Máquina da Preguiça®
O texto é uma máquina preguiçosa [Umberto Eco]
III Papas na língua
As "papas na língua" são a irmã do meio. Nascem entre os "paninhos quentes" e o "tento na língua".
Surgem amedrontadas e crescem pouco sérias, sem evitar as "falinhas mansas".
Andam, habitualmente, em bicos dos pés, são pouco exigentes e mais do parecer do que do ser.
Raramente dão a cara e preocupadas com aquilo que os outros pensam enjeitam responsabilidades.
Num discurso preparado com “papas na língua” receia-se até as vírgulas e a verdade fica para outro dia.
Sussurra-se e deixa-se de fora. Não se inclui com receio de ser excluído e exclui-se para ser incluído.
Um discurso com "papas na língua" sai sempre de uma consciência que mesmo quando pesa não incomoda.
É um discurso fraco, em surdina, que começa, sempre, com um: "desculpem qualquer coisinha". E depois esconde-se anémico e sem cor, evitando o confronto.
Percebe-se, imediatamente, ao que vai porque acrescenta aspas mesmo quando não é preciso, indirecto e sem dar nome aos sujeitos.
Reconhecível porque não tem princípio, meio e fim e passa, automaticamente, para o que não interessa.
Não é grande em tamanho e acaba antes de começar. É, até, bem mirrado pois não precisa de muito português e dá mais páginas do que as necessárias, com parágrafos longos que dariam poucas frases curtas.
Evita, liminarmente, a contestação e por isso não se dá por ele.
Deixa passar ou vai a reboque, não quer saber e deixa andar.
Apazigua.
Não entusiasma nem acrescenta.
Como os restos de um bom prato que chega à mesa requentado.
Um mosquito com horror a sangue.
Uma cerveja quente.
Água que não chega a matar a sede.
Carne com vocação para peixe.
Salgado com sabor a doce.
Conduto que não deixa sustento.
Um orgasmo fingido e uma dor de cabeça que não se sente.
É de quem evoca esquecimento, acaba citando terceiros e diz: "já cá não está quem falou".
De quem se encolhe num tempo em que faz falta é quem se estique.
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III Faz-te uma mulher
Há uma polémica antiga, com contornos de discussão de Orçamento Geral de Estado a propósito de homens e mulheres. Em forma de regra em que o homem está para o tira-cápsulas e para o comando como a mulher está para X.
Injustiças? Sim.
Acusações? Muitas. E de ambos os lados:
O homem arruma e a mulher muda de sítio.
O homem amadurece e a mulher enruga.
O homem estaciona e a mulher esforça-se.
Problemas de interpretação? Alguns:
O homem enerva-se e a mulher anseia.
O homem distrai-se e a mulher fica contemplativa.
O homem diz palavrões e a mulher verbaliza.
Talvez por isso em relação às mulheres avançamos por instinto, com vontade de promessa eleitoral, mas em órbita de colisão, num trajecto mortal repleto de lombas e curvas perigosas por assinalar.
O íntimo de uma mulher permanece uma incógnita. Uma parte recôndita e desconhecida acerca da qual supomos, arriscamos, erramos e tentamos outra vez.
O nosso entendimento fica aquém. Disfarçamos, mas continuamos perdidos, desorientados. Presos a devaneios e agarrados como náufragos a equívocos. O que sabemos não chega para as necessidades. Uma balança comercial risível.
Andamos com ar entendido a angariar informações, aproximando-nos de um conhecimento indirecto e feito de suspeitas, ses e mas.
No entanto, achar que se compreende uma mulher é um equívoco, porque em relação às mulheres não se sabe, presume-se.
São mais as dúvidas do que as certezas. As azias do que as digestões sem problemas.
Não é fácil entender uma mulher. Ela fecha-se em copas. Faz-se desentendida. Não dá pistas. Põe-nos a adivinhar.
Não facilita, pelo contrário, testa-nos.
Em relação às mulheres avança-se com prudência, com a cautela de quem se acerca de uma joalharia em liquidação total.
Estar ou viver com uma mulher é ser posto à prova. Avaliado. Escrutinado. Sem direito a ser informado sobre a matéria passível de avaliação: arrumação, disponibilidade, gostos, hábitos, atrasos, convivência...
É por isso que não acredito na igualdade sexual. Ao contrário do homem, a mulher não precisa que lhe segurem a porta e é implacável mesmo quando acorda despenteada ou se sente traída pelo anúncio que prometia frescura durante todo o dia.
Os homens não têm hipóteses perante a sua falta de misericórdia.
Até porque o homem desconfia, mas a mulher sabe, pressente, desencanta, desencobre.
É ágil na denúncia de contradições.
Aponta responsabilidades
Apanha falhas.
Alerta para falinhas mansas.
Deteta judas.
E, no final, o homem só é corajoso porque é a mulher que vive até mais tarde.
Quem fica a ganhar?
Como sei o meu lugar, por mim as mulheres saem na frente. Têm tempo extra e melhores condições.
Em relação às mulheres assumo a preferência, concedo reverência e condescendo nas unhas à Benfica. Também descrimino positivamente, arranjo mais uma cadeira e acrescento um lugar à mesa.
Contorno, rapidamente, a constitucionalidade, nego incongruências, não fiscalizo incoerências, estabeleço uma prioridade passageira e invento uma lei aprovada à justa.
Flores, também, nunca são demais.
Sei que não é justo e democraticamente impopular. Por variadíssimas razões. Toda a gente reconhece que a mulher é frágil, mas ninguém perdoa homem lingrinhas. De um homem, também, ninguém aceita pânicos ou manias.
Ainda assim não cedo.
Pode passar por parcialidade, favoritismo, uma tendência descabida e exagerada, um retrocesso feminista. Mas, não consigo evitar.
Porquê?
Reconheço a minha dívida.
O mundo precisa de mais mulheres.
O homem desilude mais. Esconde. Desvaloriza.
A mulher chora, mas o homem é chorão: queixa-se, atribui culpas, desculpa-se, vai aos arames. O homem barafusta, mas a mulher prepara em silêncio.
Uma mulher acumula horários, tarefas e dias de férias, mas continua indisponível para tréguas e insubornável. E em hora de vingança tem barba mais rija.
Mesmo sem soluções para a malha caída das meias, a mulher enfrenta. Não se esconde. Segue em frente.
Um grande homem é um achado, uma grande mulher uma inevitabilidade.
O homem sabe-o e para ganhar tempo efeminou-se. Perfumou-se. Desenvolveu sensibilidade e conquistou intuição. O rosa já não é exclusivo feminino. Os cremes democratizaram-se.
Mas, para mim, continua claro, mesmo quando em alturas de maior incompreensão feminina me apetece gritar assustado: "S.O.S, mulher desgovernada", em caso de dúvida escolho a mulher.
E para me justificar não hesito e respondo, pronto, ao homem, que me acusa de vira casacas, sem me desculpar:
Faz-te uma mulher!
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III Bué da phixe
Em relação ao calão melhores dias virão para mim, certamente. Sou sintaticamente esforçado e empenhado ao nível dos sintagmas mas, a verdade é que ando linguisticamente descompensado. Prejudicado, descaradamente, pela semântica. Em constante anacronismo proverbial.
Encalhei.
Ainda me falta tomar a Bastilha linguística de assalto. Continuo agarrado ao "ph". Desconfiado com "bacanos, "maganos" e "meus".
O meu calão anda desfasado. Caio com os bofes de fora aos primeiros metros no caminho da actualização. O meu coração não aguenta, porque a minha modernidade é antiga. Vitoriana.
Vivo no antigamente e não tenho grupo certo.
Tenho paleio de antigamente, português de terceira idade. Ando a cair da tripeça no calão.
Falta-me "Swag".
Tenho uma evolução lenta em relação à gíria. Escapam-me décadas inteiras.
Sou do tempo do cinema mudo e sendo optimista, durante algum tempo, da época do preto e branco.
Falho no contexto, sentido de oportunidade e troco significados.
Dou de "frosques", em vez de "dar de fuga" e vou-me embora em vez de “bazar”.
Finjo ser “Fixe", mas denuncio-me porque gosto muito em vez de “bué” e prefiro um bocado quando se pedia uma “beca”.
Conforme as épocas deixo de saber conjugar e erro nos graus.
Em relação ao calão vacilo. Improviso, logo baralho.
Sou inexpressivo por falta de vocabulário. Acabam-se-me rapidamente as palavras e desactualizo-me com facilidade. Falho nos tempos, acordos, assimilações, incorporações, e nos "ismos". Confundo-me.
Acabo a desculpar-me, embasbacado.
Fico apeado.
Sou desadequado. Antiquado.
Calão?
“Népia!”
Apesar de tudo tomo notas, atento a expressões e complementos. Treino e aplico-me.
Já sinto algumas melhorias.
Incómodos à parte tenho recuperado de anos de atraso. Derrapo menos e já não tropeço no trocadilho. Já faço “cagaçal” em vez de barulho.
Acredito que estou no caminho certo em relação ao calão.
Ainda me falha a memória e a dicção, mas já arranho.
"Tásse".
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III Relativizar por aí
A partir de hoje vou relativizar.
Passo a desvalorizar e a encolher os ombros.
Vou tirar importância às coisas. Passá-las de extrema a assim-assim e achar que não é tão mau como parece.
Vou enganar-me de propósito. Trocar códigos e PIN.
Não vou reparar em rugas, passo a descontar cabelos brancos e acabo a subtrair quilos a mais.
Tirar tempo aos atrasos e, por minha conta e risco, juros à dívida.
Aproximar distâncias e saltar degraus.
Vou abrandar a pulsação e diminuir batidas por minuto.
Abolir solenidade às cerimónias, abandonar ralações e por de lado preocupações.
Vou vencer o stress, desbaratar complicações e recuperar horas de sono perdidas.
Pânicos e desesperos não são para mim!
Não vou em crises!
Vou por fim às azias e mal estares, tirar graus à febre e não dar importância às alergias.
Acabaram-se as maleitas!
Vou ganhar anos.
Rejuvenescer.
Acabar, praticamente, recém-nascido.
Serei optimista. Passarei a descontrair, a desconsiderar, a deixar-me de pressas, a evitar confrontos e iras.
Acharei que há pior, que não vale o sacrifício, que se pensar bem… que depende do ângulo.
Vou andar de olho nas perspectivas e amantizar-me com o deixa andar.
A minha frase favorita vai ser: “pensando melhor…”.
Saindo de fininho quando a coisa der para o torto.
Nada será como dantes.
Estou a falar a sério! Muito a sério. Os dias não estão para brincadeiras.
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III Le tourist c'est moi
Um público de escalão etário de universidade sénior, de reforma pouco mediterrânica e poder de compra humilhando o da Europa periférica, anunciou-se como linha avançada privilegiada, desbaratando "very nice" a torto e direito e prometendo comprar sem precisar de promoção. Sorri encantado por não ter sido enganado pelo folheto que lhe prometera anticiclones pacíficos e precipitações amestradas.
Ainda havia vestígios de terra à vista nas amuradas quando os primeiros jovens de espírito abandonaram, como emplastros, o vapor de três andares acabado de atracar para o passeio lisboeta que os levará à certa.
Saíram, pela mão campina do guia, em trote rápido, com organização de cabresto, curiosos e ávidos por treinar o “óbrigadu”.
Destemidos por entre as taxas de IVA, serpenteando os Táxis que os cobiçavam avançaram lestos, prontos para reconquistar muralhas adentro e colina a colina Lisboa. Elas procurando Cristianos Ronaldos. Eles portuguesas com resultados positivos visíveis e adelgaçados de Herbalife e de preferência frescas que nem alfaces.
Embasbacados com a história bifurcaram-se apressados em grupos coloridos distintos, como se tivessem saído de um musical bem-sucedido de La Féria com ganas de miúras diante do pano vermelho.
Entusiasmados com a mudança de ares, seguiram de nariz de Gérard Depardieu no ar numa espécie de corrida de tróleis carregados de recuerdos e lembranças avulso made in China. Uns com ares de falsa partida mais atrás do que outros e outros para quem a ordem para arranque se perdeu na cadeia de comando.
Todos de guia Michelin em riste sedentos por experiências ricas em fait divers e contactos directos com os nativos.
Pararam no eléctrico mais próximo como um enxame de melgas em Quarteira pousando pesarosos nos lugares disponíveis, exaustos de informação e de glúteos esgaçados pelas milhas marítimas.
Transpirados e afogueados pelo novo clima, foram trocando itinerários saindo ainda em andamento frente a uma tasca onde um funcionário com ritmo de trabalho moderado vendia bifanas enlameadas em molho antigo picante.
Um adolescente subterrado em acne a quem de boca a boca se identificou "problema na glândula" açambarcou voluntário um gordo par do produto da casa e avançou empenhado "correndo como um extremo" para uns torresmos de quinta geração que lutavam com um universo de moscas numa orgia aérea que sobreviviam a uma cadeira eléctrica pendurada no tecto que em vez de as electrocutar lhes aquecia os ânimos e as feromonas perdidas no ar. O pasmo foi geral e contagioso, esgotando o stock de carcaças.
O coro de " very nice" seguiu via Jerónimos e afluentes, avançando como um rei sol poderoso anunciando-se em flashes exuberantes por entre a mole cuja hospitalidade lendária os atraíra de antemão.
Enfastiados com o excesso de pastéis de natas que empurraram bucho abaixo a avanços de meia de leite, completando com este o par do matraquilhos gastronómico, extasiaram com tudo o que a isso se sucedeu, num encantamento turístico generalizado que grassava nos espíritos como uma epidemia bem-intencionada que faz achar graça mesmo ao ridículo e aprovar até o impossível.
O dia para o público de escalão etário de universidade sénior terminou onde começou, dando razão à fama dos brandos costumes do país, da luz límpida da cidade, da calçada que é portuguesa, dos azulejos que estão por todo lado.
Chegados à embarcação que atracara ainda a manhã não via meios de chegar ao almoço atacaram, inconscientes dos riscos da diabetes, ao som de mambos e salsas, as guloseimas do chef, como crianças ressacando da Ritalina, salivando ante as gomas.
Continuavam incapazes de distinguir no planisfério, onde reconhecem pior a península ibérica do que a bota italiana, onde acaba Portugal e começa Espanha. Experimentaram o pastel de bacalhau, mas continuam pensando tratar-se de um único pavilhão cujo eixo comum fez transitar do lado mais pobre para o mais rico o filho menos preferido de Joseph Blatter.
O moderno vapor que as trouxera sãs e salvas até aos endividados renitentes e de ajustamento em negação e que ficara no porto de sol a sol aproveitou a maré, dando vivas aos cacilheiros de Joana Vasconcelos. Afastou-se saudoso de " very nice" em " very nice" até ao regresso prometido, que o PIB rarefeito português espera, saudoso de quem deixa saudades que é coisa que os de cá não vão levando. Como quem pede o pão por Deus, rápido e recheado de dólares. De quem vive num eterno dia de todos os santos, com orações devotamente dedicadas a S. FMI. Voltem sempre.
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III Ódios de estimação
Antipatizo com ódios de estimação. Não nos dão descanso. Controlam-nos. Seguem-nos fiéis e incansáveis, de soslaio, para todo o lado e atraiçoam-nos na primeira oportunidade.
Calculo que toda a gente os tenha, mas arrependo-me como se sentisse o aperto de uma contrição infligida pela minha consciência pesada agonizando, num abraço com o ímpeto de uma anaconda adulta voraz.
Não chego à penitência e tento não amar o próximo com que me cruzar, mas fico a desejar ter uma natureza vetusta de santo misericordioso, com infinita capacidade de Madre Teresa para perdoar e aceitar as coisas como são (imperfeitas e por vezes abjectas e de mau gosto).
Infelizmente, peco e acabo sempre voluntariamente a arremessar, violentamente, a primeira pedra, sorrindo comovido ao vê-la planar sobre as minhas vítimas preferidas até as estilhaçar, irremediavelmente, num golpe certeiro letal que só o granito crítico é capaz de proporcionar.
Gostava de ter um gosto eclético menos lancinante, um palato pouco exigente com os sabores, uma visão com pouca acuidade, fazendo vista grossa ao que a rodeia, uma inteligência analiticamente pouco espontânea e distraída.
Percebo que os ódios de estimação são contraproducentes, impopulares, fonte de embaraço e de inimizades. Precisam de ser alimentados como Chihuahuas frágeis e esfomeadas. Lembrados, num canal memória com programação própria e contínua, para não caírem no esquecimento. Justificados num julgamento constante, num tribunal sem processos pendentes. Uma canseira!
Não há dúvidas de que tenho uns quantos ódios de estimação. Bastantes, admito. Que só eu cá sei. Mais outros que são do conhecimento geral.
Gostava de encontrar em mim motivação de aspirante ambicioso a Masterchef para os perder. Mas não sigo correctamente a receita. Fico a várias caramelizações aquém de o conseguir. Tiro do forno antes de tempo.
Infelizmente tenho a mesma pressa em perder ódios de estimação do que na entrega da declaração de IRS e a mesma capacidade para fazer isso acontecer do que em desfazer-me de jornais e revistas criando pó. Acumulo.
Provavelmente afeiçoei-me.
Pensei começar pelos mais pequenos. Fasquia bem em baixo. Abdicar, lentamente, de meia dúzia de autores e compositores odiosos. Perdoar cores exuberantes. Para depois continuar por aí acima até governos inteiros fracassados e tops inteiros com sucessos improváveis.
Passadas pequenas, mas firmes, em cortejo corajoso, numa complicada estrada até Damasco com sinistralidade de IC perigoso em que, habitualmente, corto a direito ou esbarro atacando a curva como contracurva.
Nem assim!
Não é fácil perder o hábito. Custa mais do que arranjar lugar em transportes alternativos em dia de greve geral. É mais fácil arranjar ódios de estimação do que perdê-los, acrescentá-los a uma lista implacável já extensa do que vermo-nos livres deles. Como se desbaratássemos preciosidades a preço de bric-à-brac. Com remorsos de quem se desfaz das joias de família.
Facilmente nos empenhamos em arranjar espaço para mais uns quantos, como quem encafua mais gente na lotação já esgotada de um Mini. Antevemos dificuldades de que quem não encontra lugar na gaveta para as meias novas e desistimos.
Consciente dos riscos, resolvi jogar pelo seguro. Não faço promessas nem juras que acabam em desilusão. Não me quero transformar num executivo delapidando paciência do erário público. Acrescentando juros ao tempo já perdido, enquanto alimenta ilusões. Compromissos ficando pelo caminho íngreme, numa Falperra de uma vida em que nos esgotamos ainda a meio da rampa.
Sinto que começam a desistir de mim. Desinvestiram em mim. Exonerado prematuramente. O tempo urge.
Tentarei arranjar motivação de Masterchef para os demover.
Entretanto, nos próximos anos cooperarei, convicto, ainda assim, de que será mais fácil mudar o eixo magnético da Terra do que atingir o que pretendo.
Até porque em relação a ódios de estimação, sinto que ainda não estou no ponto.
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III Nails & Snails
Na constante colonização de costumes a que estamos expostos e que tem para a maioria o mesmo grau de atração do que a luz para a traça, o caso das unhas de gel é um fenómeno de proporções bíblicas e contornos frankenstinianos. Uma eventual forma de vingança da costela que a mulher tem atravessada há séculos.
Confesso que ando há anos abaixo da média nacional para unhas. A considerada normal. Para homem, claro está. Talvez por isso tenho-me mantido em pleno alerta vermelho contínuo, olhos postos num farol de bom senso que me afasta das traiçoeiras águas do ridículo.
As actuais dimensões, originadas num qualquer Pesadelo em Elm Street, (confrangedoras para o ascetismo mais milenar) que as unhas têm atingido entre nós, faz-nos satélites de um escalão sénior de superpotência e linha avançada na estatura global.
A nossa posição indisputada só é questionada pelo Brasil (berçário invicto das unhas de gel) onde o hábito tem importância de filosofia de vida.
Longe vão os dias em que as unhas eram, exclusivamente, fonte de distracção votadas a mordomias de roedores humanos empenhados no seu corte até ao sabugo como castores desvairados.
Onde tudo começa?
Na inveja de Cleopatras seguidoras das novas tendências que via mirone cobiçam a cutícula estrangeira.
Numa fase posterior, pequeno passo para a humanidade mas grande para o neófito das unhas de gel, em que as opções mais controversas já foram efectuadas - cores, design em filigrana, stencil vanguardista, proporções generosas de lâmina de Sandokan e aplicação da capa gelatinosa - segue-se a adaptação às próteses afiadas.
Segue-se a conclusão de que nada será como dantes: atar atacadores, tirar o passe social ou uma fatia de fiambre, procurar um contacto na lista de endereços do telemóvel… e a inevitabilidade de que é nos detalhes que as coisas se complicam, num emaranhado inconciliável entre a prática e a estética.
Manter-se em glória no panteão dos imortais exige esforço e dedicação, somando-se gastos equivalentes a um périplo pela Escandinávia, resolução de problemas mecânicos de delicadeza aeronáutica e atenção permanente e premente no que à manutenção diz respeito - retoques, substituições, decapamentos - corolário de desprendimentos, infiltrações e acidentes envolvendo terceiros, até atingir a harmonia perdida.
Anseio por um tempo primordial onde tudo volte à normalidade. Unhas sendo unhas. Aberrações erradicadas para as entranhas da terra ou espaço sideral. Que se organize um poderosíssimo exorcismo ou fogueiras em que acabem derretendo em banho-maria no calor das labaredas do Hades do mau gosto.
Mas, entretanto, no actual estado das coisas, a minha grande dúvida é:
Como é que se comem os caracóis?
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III Deus não dorme (muito menos ao domingo de manhã)
A campainha toca. 9.45 a.m. Arranjo-me à pressa e vou à porta: de chinelos, o impensável a ver-se, olhos de João Pestana, hálito em fermentação, cabelo de ouriço.
Espreito pelo óculo e atraiçoado pela profundidade de campo que me faz confundir o espírito santo com a publicidade não endereçada apercebo-me das fagulhas infernais que andam pelo ar.
Faço silêncio.
Olho à volta para verificar o que me pode denunciar: música alta, televisão ligada…
Faço-me invisível e escondo-me translúcido atrás da porta. A esquivar-me à “palavra do senhor”. Resignado como Lincoln que: “Pode enganar-se a todos por algum tempo, alguns por todo o tempo, mas não se pode enganar a todos todo o tempo...”
Convencido de ter mais contas acumuladas do que um psicopata sem escrúpulos. Que o mundo acaba até à hora de almoço.
Tocam, novamente.
O suor escorre-me das têmporas do peso da minha consciência.
Espiritualmente esbaforido.
Capaz de enfrentar Zeus, mas com medo de enfrentar os descendentes de Calvino.
Olho, novamente, pelo óculo.
Em apuros.
A poucas polegadas da perdição. Lugar garantido entre os 5 maiores prevaricadores. Translúcido atrás da porta.
A arranjar lugar cativo, na bancada dos sócios de maior valor, no dia do juízo final.
Pecaminosamente em boa forma. Apto para correr a ultra-maratona em contramão na via da virtude.
A olhar pelo óculo. Ainda lá está? Não costumam ser dois?
A adivinhar-lhe as asas a sair das costas por entre o blazer.
Translúcido atrás da porta. A consternação estampada na cara em cor salmão da Noruega.
A pensar: “Porquê eu?”.
A contas com anos de sarcasmo, ironia e trocadilhos.
A gritar abafado.
“Já demos!”, na ponta da língua. “Estamos servidos!”, no fundo da garganta.
Com pena de fingir. Cheio de remorsos. A ferver, lentamente, a 40° o síndrome de Estocolmo.
Desmagnetizado para a fé. Blasfemo.
A apoderar-me a partir do óculo do seu cérebro e a ordenar-lhe: ”Vai em paz e que o senhor te acompanhe!”.
Oiço, novamente, a campainha.
Abro. Translúcido, a esquivar-me à palavra do senhor, de chinelos, o impensável a ver-se, olhos de João Pestana, hálito em fermentação, cabelo de ouriço.
Olho para as asas a saírem do blazer e em pânico bato arrependido, sincopado, no peito enquanto guincho:
“Misericórdia, misericórdia!”
Os pés já afogueados pelas lavaredas do inferno.
“Salve-me, salve-me!”.
Eu a vê-lo avaliar-me para o juízo final.
E ele a responder-me, calmo, sem asas à vista:
“Importa-se de puxar o carro à frente. É que ontem à noite estacionou frente ao portão da garagem e não consigo sair.
Confirmo que sim que vou só buscar a chave e fecho a porta.
10.00 a.m.
Olho pelo óculo ainda assustado.
O fim esteve à vista. Escapei por um fio.
Preciso de uma bebida.
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III Destaque Sapo
Um especial agradecimento para o destaque feito pelo sapo ao post Homem ao Mar e a todos os que o leram e comentaram.