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III Descongelo, logo cozinho

Sábado, 03.11.12

Antes de mais, ressalvo que aprecio um bom prato. Que valorizo os sabores e aprecio a diversidade. Sou até, provavelmente, aquilo a que se chama um bom garfo. No que se expõe a seguir é o fazer (saber) que me escapa.

   Não me orgulho, mas a minha relação com a culinária não é tanto ao nível de cozinha, mas de sala de jantar ou estar, comendo ou apreciando no pequeno ecrã um chef em acção incutindo-me a sensação (errada) de que um Carré cozinhado na perfeição é tão difícil de conseguir quanto a abertura de uma lata de conserva.

Uma relação que só pode ser vista na óptica do utilizador, uma vez que as minhas contribuições ficam aquém do ovo estrelado e ao nível do pôr a mesa.

   Por muito que me custe admitir, não vou em receitas, não alinho em marinados, desconfio de tudo o que exige preparação no dia anterior, não admito rigores nas temperaturas, nem sei interpretar um q.b.

   Se a culinária é uma ciência, continuo na idade das trevas e prestes a ir parar à fogueira acusado de bruxaria. 

Na cozinha, a não ser como consumidor, sou inimputável.

  A desistência sumária torna-se a decisão acertada sob qualquer perspectiva. Tempero em exagero, açambarco medições, aldrabo cozeduras, esturrico flambês. Não me comprometo com o escalfado e troco a salsa por coentros. Também ultrapasso o al dente,  choro antes de descascar a cebola como uma espécie de enfermeira com pavor a sangue, não distingo rúcula de alface e não consigo deformar, cortar, salgar ou untar.

   Qualquer semelhança entre o meu resultado final e um rissol ou pastel de bacalhau é mera coincidência, pois careço de palato impoluto, não tenho mão certa nem ouvido para identificar o ponto.

   O meu espírito intempestivamente desprovido de sensibilidade culinária leva-me a não considerar relevante ter a capacidade de provar. Ou seja, não tenho língua para coisas a escaldar. E quanto a nariz, não tenho um que me permita distinguir salva de orégãos.

Não percebo de misturas, hesito no pimentão e não domino a polpa de tomate. 

Sou demasiado impaciente para ficar à espera durante uma hora e meia da colaboração do forno e tenho antipatia por tudo o que exige mais do que um tacho ou frigideira para ficar em condições.

Tenho, também, angústias se tenho que optar entre a lenha, gás ou electricidade. E não posso excluir uma certa esquizofrenia no que aos condimentos concerne.

Sou, ainda, exageradamente generoso na pimenta, considero o piripiri um amigo de longa data e gosto da cor de uma boa malagueta. Em relação a todos, não aceito que não possam em simultâneo estar no mesmo prato.

   É com um misto de mágoa e vergonha que reconheço que sou a razão por que existe a secção de enlatados no Pingo Doce.

Se a cozinha me fica entregue, não acredito no acabado de fazer. Não percebo porque uma refeição que está pronta em dois minutos não possa ser gastronomicamente interessante. 

Entregue a mim, a culinária não é uma arte, é um mamarracho.

Em termos culinários, em relação a jantar forneço, unicamente, o ambiente.

   Consigo, perfeitamente, esclarecer a minha relação com a culinária, num conjunto restrito de passos elementares:

 

tiro do frigorífico

ponho no micro-ondas

ligo

despejo num prato depois de aquecido

como

 

Dito de outra maneira, determino, ligo e corro para a trincheira para protecção, antecipando um rebentamento generalizado, provocado por quem desrespeitou tempos e recipientes adequados.

   Facilmente se depreende que se a simplicidade é o mais difícil de atingir, então eu sou um mestre. Mas, não tenho dúvidas de que no que à culinária diz respeito a minha inclusão no seu universo exige que seja admissível que:

 

   Descongelo, logo cozinho.

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publicado por Carlos M. J. Alves às 20:11





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