Máquina da Preguiça®
O texto é uma máquina preguiçosa [Umberto Eco]
III Deixar de fumar = vegetar
É do conhecimento geral que uma mentira repetida várias vezes, não passando a ser uma verdade é aceite como tal.
Estou há 72 horas sem fumar. Essa é a parte que é verdade. Verdadinha!
A outra, a que não interessa, é que deixei de fumar.
Essa vou repeti-la muitas vezes, porque temendo que não seja verdade, vou aceitá-la como tal.
Convencer-me a deixar de fumar é uma subtileza que se insinua, discreta, como uma colónia atrás da orelha.
É, sem dúvida, mais fácil persuadir um adolescente a apreciar a pintura de Rubens do que a mim a deixar de fumar. Nessas alturas (de tentativas inglórias) repito a mentira e aceito-a como verdade.
Apesar de tudo estou orgulhoso de mim. Das minhas 72 horas. Vivo num ambiente passional do tipo Love Boat. Em regime de auto-deslumbre. Doce como uma torta Dancake.
Considero-me um Zezé camarinha bem-sucedido, passando Nivea Lotion e garantindo Ai lave iu às súbditas porcinas de Sua Majestade [Que saudades que eu tenho do verão!].
Isto num campo, meramente, metafórico, relacionado, em exclusivo, com o meu auto-deslumbre.
Já me sinto a ficar mais saudável. Estou só à espera que pare de chover. A chuva inibe o desportista que há em mim.
Bons ventos vão-me empurrando como uma invencível armada até uma enseada segura, carregando pelo caminho sobre caravelas inseguras. Até parece que oiço (como num pesadelo) os Trovante cantando a Xácara Das Bruxas Dançando:
Ó castelos moiros, armas e tesoiros
Quem vos escondeu
Ó laranjas de oiro que ventos de agoiro
Vos apodreceu
(…)
Caravelas, caravelas
Mortas sob as estrelas
Como candeias sem luz
Os padres da inquisição
Fazendo dos vossos mastros
Os braços da nossa cruz
Caravelas
Entusiasmo-me. Progrido nas horas. 72 e contando. Eu que nunca liguei muito aos Trovante a não ser aquela que toda a gente gosta [Perdidamente] com o poema de Florbela Espanca acicatando não as vitórias (como um autêntico Virgílio) amorosas, mas as desventuras de um marcador afectivo a zeros:
Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Áquem e de Além Dor!
(…)
E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dize-lo cantando a toda a gente!
Estou há 72 horas sem fumar. Já tinha dito, não tinha? Não é muito, mas já conta. O pior no fumar é deixar. E o igualmente mau em fazê-lo é a memória. O cigarro que se fuma a acompanhar o café. A leitura do jornal. Enquanto se espera. Enquanto, enquanto, enquanto…
Optei por deixar de fazer. Simples, não? Libertar-me da submissão ao cigarro e da escravatura da rotina e do hábito.
Sinto-me um vegetal.
Hoje estou naqueles dias em que preciso, urgentemente, de sol e de ser regado.
Apesar de tudo, continuando a ouvir o Luís Represas com os Trovante:
Caravelas, caravelas
Mortas sob as estrelas
Jurando que meia verdade me basta.
72 horas e 30 minutos sem fumar. E contando.
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1 comentário
De lwillow a 29.04.2012 às 14:24
Força Carlos ! Pelas minhas contas já passaram 74 h e 18 m !