Máquina da Preguiça®
O texto é uma máquina preguiçosa [Umberto Eco]
III Deixar de fumar = vegetar
É do conhecimento geral que uma mentira repetida várias vezes, não passando a ser uma verdade é aceite como tal.
Estou há 72 horas sem fumar. Essa é a parte que é verdade. Verdadinha!
A outra, a que não interessa, é que deixei de fumar.
Essa vou repeti-la muitas vezes, porque temendo que não seja verdade, vou aceitá-la como tal.
Convencer-me a deixar de fumar é uma subtileza que se insinua, discreta, como uma colónia atrás da orelha.
É, sem dúvida, mais fácil persuadir um adolescente a apreciar a pintura de Rubens do que a mim a deixar de fumar. Nessas alturas (de tentativas inglórias) repito a mentira e aceito-a como verdade.
Apesar de tudo estou orgulhoso de mim. Das minhas 72 horas. Vivo num ambiente passional do tipo Love Boat. Em regime de auto-deslumbre. Doce como uma torta Dancake.
Considero-me um Zezé camarinha bem-sucedido, passando Nivea Lotion e garantindo Ai lave iu às súbditas porcinas de Sua Majestade [Que saudades que eu tenho do verão!].
Isto num campo, meramente, metafórico, relacionado, em exclusivo, com o meu auto-deslumbre.
Já me sinto a ficar mais saudável. Estou só à espera que pare de chover. A chuva inibe o desportista que há em mim.
Bons ventos vão-me empurrando como uma invencível armada até uma enseada segura, carregando pelo caminho sobre caravelas inseguras. Até parece que oiço (como num pesadelo) os Trovante cantando a Xácara Das Bruxas Dançando:
Ó castelos moiros, armas e tesoiros
Quem vos escondeu
Ó laranjas de oiro que ventos de agoiro
Vos apodreceu
(…)
Caravelas, caravelas
Mortas sob as estrelas
Como candeias sem luz
Os padres da inquisição
Fazendo dos vossos mastros
Os braços da nossa cruz
Caravelas
Entusiasmo-me. Progrido nas horas. 72 e contando. Eu que nunca liguei muito aos Trovante a não ser aquela que toda a gente gosta [Perdidamente] com o poema de Florbela Espanca acicatando não as vitórias (como um autêntico Virgílio) amorosas, mas as desventuras de um marcador afectivo a zeros:
Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Áquem e de Além Dor!
(…)
E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dize-lo cantando a toda a gente!
Estou há 72 horas sem fumar. Já tinha dito, não tinha? Não é muito, mas já conta. O pior no fumar é deixar. E o igualmente mau em fazê-lo é a memória. O cigarro que se fuma a acompanhar o café. A leitura do jornal. Enquanto se espera. Enquanto, enquanto, enquanto…
Optei por deixar de fazer. Simples, não? Libertar-me da submissão ao cigarro e da escravatura da rotina e do hábito.
Sinto-me um vegetal.
Hoje estou naqueles dias em que preciso, urgentemente, de sol e de ser regado.
Apesar de tudo, continuando a ouvir o Luís Represas com os Trovante:
Caravelas, caravelas
Mortas sob as estrelas
Jurando que meia verdade me basta.
72 horas e 30 minutos sem fumar. E contando.
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III Destaque Sapo
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III Sporting, arriba! Avanti!
Como disse aqui, o melhor do futebol é a criancice. Partirmos com o melhor marcador para o remate à baliza. Novamente com seis anos. Coleccionadores, ávidos, de cromos.
Hoje sou adulto. Tenho, no mínimo, cento e vinte anos. Procuro lances duvidosos. Cotoveladas que justifiquem a derrota frente ao Athletic Club de Bilbao.
Pelo barulho que estava ontem à noite no estádio San Mamés, em Bilbao, dava a sensação de que um país inteiro (Basco) se empenhara para eliminar o Sporting. Foi o que foi preciso. Infelizmente era o que faltava.
Ontem à noite acabou o sonho europeu do Sporting de Sá Pinto (e de todos nós). Um final infeliz. Saiu de cabeça erguida. Mas, as vitórias morais não sendo desmerecedoras, ao contrário das outras, têm o seu quê de desilusão. Cair de pé continua a ser um tombo.
Apesar da caminhada de gigante ontem o Sporting deu um passo atrás. Mas como diria João Peste [de quem não tenho conhecimento de que simpatize com o Sporting ou se isso é assunto que o motive] com os Pop Dell’Arte:
Ainda tenho um sonho ou dois
Amanhã volto aos cromos. Coração de leão:
O Sporting nasceu um dia
Sob o signo do leão
Nós aprendemos a amá-lo
E a trazê-lo no coração
À t-shirt I ♥ Sporting.
Sporting, arriba! Avanti!
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III Bairro Alto aos seus amores
[Provavelmente a propósito do programa A Conversa dos outros produzido pela Buenos Aires Filmes, da autoria de Miguel Braga e com realização de Gonçalo Roquette]

A Conversa dos outros é um programa sobre os bairros históricos lisboetas exibido na RTP2.
As pessoas e o seu dia-a-dia. Este domingo foi dedicado ao Bairro Alto. Entre a Escola de Música do Conservatório Nacional e o Restaurante Bonsai. Mas não só.
Em relação a Lisboa sempre oscilei entre a Graça e o Bairro Alto. Sempre subi e desci o Chiado. E sempre preferi o Príncipe Real.
Na época em que frequentei o Bairro Alto (o Bairro, como diziam os fiéis) toda a gente conheceu alguém que não devia.
Toda a gente bebeu o que não era preciso (ou era?).
Ninguém acabou uma noite sem uma história. Contando a sua. Ouvindo a de alguém. Fazendo sua a de outro.
Uma frequência feita de bêbedos, algumas prostitutas, revolucionários, inadaptados, estudantes de Erasmus com traços de Ibsen, alunos da FCSH com ares trotskistas de PSR, freaks, chicos fininhos com Ar de Rock
Aos sss pela rua acima
Depois de mais um shoot nas retretes
alternativos de Doc Martin’s ameaçando nas t-shirts Death to the Pixies, gente (muita) de negro, indivíduos cravando cigarros, moedas ou horas, confirmando a pontualidade para encontros marcados ou desencontros quase a acontecer.
Novos e velhos em espírito:
Bairro Alto aos seus amores tão dedicado
Quis um dia dar nas vistas
E saíu com os trovadores mais o fado
Pr'a fazer suas conquistas
Muitas revoluções foram preparadas, em velhas mesas, entre imperiais. A maioria nunca chegou a acontecer. A juventude tem a maior das facilidades em sonhá-las. Também se escreveram, rapidamente, livros, se pintaram de cabeça quadros fabulosos e se encenaram peças em pouco tempo.
Álcool
Má fama
Becos
Sujidade
Decadência
Romântico
Perigoso
O Bairro Alto era tudo isso. E de todos. Exigia menos do que a 24 de Julho para receber.
Seria Kitsch se alguém se preocupasse com isso e se não fosse só usado, gasto e sem ligação.
Os Rádio Macau cantavam-lhe o Elevador da Glória que levava as pessoas até si. Os Peste & Sida o Gingão, imortalizando-lhe o Sr. Aníbal:
Lá os flipers e os matrecos
Comem niqueis de seguida
No Gingão curte-se mais
Só gastamos em bebida
Havia o Frágil para que parecesse sofisticado. Mas, não tinha como enganar.
Foi disto que me lembrei quando vi A Conversa dos outros. Recordo-me nitidamente, por isso posso não estar a ser rigoroso.
Para que serviriam as madrugadas se não existissem sítios como o Bairro Alto?
Como em qualquer espaço mítico no Bairro Alto o tempo é singular. Sei de muita gente que ficou lá para sempre.
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III Perdoar ou não perdoar?
[Lista (provisória) de imperdoáveis]
Perdoar ou guardar rancor?
Desculpar ou levar a mal?
Dar a outra face ou oferecer as costas da mão?
“Paciência”, “não faz mal”, “fica para a próxima” ou “cá se fazem, cá se pagam”?
Favas contadas ou vingança servida fria?
Um D. Corleone vingativo, um Tony Soprano pronto a fazer estragos ou Dalai Lama perdoando a ocupação do Tibete?
NÃO PERDOO
os ataques às Torres Gémeas
subsídios anulados
ordenados cortados
feriados ao fim-de-semana
finais desperdiçadas
fazerem-se à falta
derrotas consentidas
pontos mal perdidos
críticos que parecia que tinham lido a obra
realizadores que fazem filmes que não são para serem vistos
escritores com livros que prometem até ao fim
intelectuais que se armam
liberais fundamentalistas
chatos que metem conversa
engraçados sem sentido de humor
gente que se deixa comprar
que não se importava de vender
que gosta de aparecer
subsídios para os amigos
cargos para os conhecidos
uma mão lava a outra
previsões que não se confirmam
promessas que não se cumprem
desculpas que não se evitaram
sugestões desnecessárias
reparos despropositados
pratos que não ficaram iguais ao livro de receitas
médicos que vão chegar atrasados
que, afinal, vão ter que desmarcar
consensos impostos
bem intencionados
políticos que dão impressão de serem diferentes
fico-lhe a dever…
não faz mal, pois não?
posso ajudar?
vizinhos que acordam cedo ao domingo
que lavam o carro à frente do prédio
voluntários para ajudarem na manobra
impacientes na fila de atendimento
automobilistas nervosos
shampoos que, afinal, ardem nos olhos
iogurtes quase sem pedaços
rotinas que são vidas
destinos que no folheto eram de sonho
rodeios glico-doces
detergentes que não tiram nódoas
promoções que saem mais caras
descontos que são só no caso de…
períodos de carência
exigências de fidelização
doses que, afinal, só dão para um
chuva nas férias
anúncios de higiene íntima
máquinas de barbear que parecia que cortavam à primeira passagem
calças que, bem vistas as coisas, ao contrário do que dizia o anúncio precisam de um rabo bem feito para assentarem na perfeição
não ser o quinto zepellin
…
Não me levem a mal.
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III Russos, só depois do meio-dia
[Notas para um perfil]
Se a literatura for alimento (para a alma?), então eu sou um bom garfo. Nada se aproxima a um magnífico naco de prosa. Uma boa talhada de páginas. Finalizada com um majestoso cubano. Um Guillermo Cabrera Infante, Raúl Rivero ou Reinaldo Arenas.
Mal pressinto o cheiro a refogado letrado e as papilas literárias despertas antecipam, prontamente, um Carré de borrego com molho de frutos vermelhos e creme de alho francês, género Enrique Vila-Matas. Ou uma mousse de Chocolate e gengibre à base de Philip Roth para rematar. Faço, imediatamente, reserva vitalícia.
Evito acidentes culinários. Ou pratos undercooked. Sei que há pessoas que resistem a anos de dieta leve de Margarida Rebelo Pinto. Mas, literariamente tagarelando, aprecio comida condimentada. Nada me satisfaz mais do que uma boa tragédia grega. O que há de melhor do que a morte dos dois filhos de Édipo, Etéocles e Polinices, para despertar sabores? Ainda Creonte não galgou degraus bastantes na subida até ao poder e o meu palato já está em frenesim. Menos que isso, nem se aproxima de uma Salada César.
O meu estômago ressente-se. Claro! A minha saúde anda por um fio. É como degustar uma cabidela às dez da manhã ou uma feijoada e um cozido à portuguesa, bem servido, às onze.
É ouvi-lo a clamar: «socorro, estou a arder!».
Ainda assim, não desdenho. E bom mesmo é um dramalhão, daqueles de fazer inveja a Daniel Oliveira nas entrevistas da SIC, servido numa redacção exemplar. Porque os olhos também merendam.
Literatura russa, obviamente. Ooh La La! Quelle merveille!
E nada de Morangoska deslavada para ficar com um gostinho.
Há quem diga que nas letras, resplendecem os finais de Tchekhov e os de Shakespeare. Nos do inglês, as pessoas acabam mortas. Nos de Tchekhov, deprimidas, amarguradas, mas respirando. Sempre faz menos mal!
Não me lembro da abertura oficial feita por Brejnev. Provavelmente a única coisa que recordo dos XXII Jogos Olímpicos (os de Moscovo) de 1980 é o urso Misha. Nem nunca estive embevecido pelos êxitos da Soyuz. Mas, a partir de certa altura, troquei Enid Blyton por Dostoievski, Tolstoi, Tchekhov.
Foi aí que tudo começou. Comecei a associar "slova" a palavra e "pisat'" a escrever.
Apesar disso, percebo que se evite Gógol, Púchkin, Liérmontov e Turguêniev antes do meio-dia.
São impensáveis de estômago vazio.
Ninguém aguenta niilismo logo pela manhã.
Guerra e Paz, Crime e Castigo ou Anna Karenina em jejum matinal deixam uma sensação incómoda. O mesmo se diga para O Diário de Um Louco de Gógol.
Mas reconheço a minha hesitação, mal começo a ler:
No vasto edifício do Palácio da Justiça, o procurador e os membros do tribunal reuniram-se, durante a suspensão da audiência do processo Melvinsky, no gabinete de Ivan Egorovitch Schebeck;
Esqueço-me, automaticamente, do mal que faz para me concentrar no bem que sabe. Mal a tradução de Adolfo Casais Monteiro de A morte de Ivan Ilitch de Tolstoi começa a fazer efeito, fico deliciado.
A literatura russa tem para mim estatuto de menu completo. E os autores equiparáveis a Gordon Ramsay e Jamie Oliver.
Menos do que isso sabe-me a requentado. Não há estômago que resista. Uma azia desvairada cresce por mim. Perpétua.
Bem, tanta conversa abriu-me o apetite!
O que temos hoje?
Já me cheira a Ziti Al Forno.
Está-me, mesmo, a apetecer um Máximo Gorki.
Estou a ficar com uma fraquezazita.
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III Rico não adoece
Querem vencer, querem, convencidos, convencer. Vençam lá, à vontade. Sobretudo, vençam sem me chatear.
Alexandre O'Neill, Uma Coisa em Forma de Assim.
Optou pelo perfume mais dispendioso. Saído da indecisão. Obrigando-se à escolha. Aroma botânico. Fresco. Fato de bom corte. Gravata juvenil. Relógio conforme. Ar ilustre. Com chauffeur? Rico!
Contornou-me desdenhoso pela esquerda, acelerou altivo pela direita e, ultrapassando-me, reapareceu indiferente à minha frente.
Sem explicações. Desculpas guardadas.
Depois, entregou o cartão e arrecadou a merca.
A minha vizinha (de quem já falei aqui) dramaturgicamente integrada numa peça de Gil Vicente inexistente, diz palavrosa que não há ricos feios. Habitualmente fala como se estivesse a elaborar uma declaração contratual de seguros, disponível para rubricar, com o geral em letra descomunal e o mais problemático em diminuta, passando despercebido nas entrelinhas. O que a incomoda sussurra. O que a impressiona alardeia. Quando explica que «não há ricos feios», di-lo alto, peremptória, como se estremecesse ante a fogueira. Para ela Belmiro de Azevedo seria deslumbrante em qualquer época ou cultura, subordinado a qualquer luz, captado no enquadramento mais duvidoso.
Apesar das vantagens, ainda bem que não sou rico. Poderia cair na tentação de me convencer.
Se fosse rico exigiria faixa exclusiva para condução autorizada a qualquer velocidade.
Estacionamento uni-pessoal.
Lugar à frente. Arrevessado e à sombra em espectáculos ao ar livre.
Temperatura a gosto: calor pouco abrasivo e humidade não incomodativa.
Seria exigente no trato. Espartano na proximidade.
Desautorizava os compromissos.
Reservava-me as manhãs.
Não estaria para fretes.
Nem para dias de 24 horas garantidas.
Alvenaria um período de férias só para mim.
Se eu fosse rico recusava-me a adoecer. Aliás isso seria o começo. Recusar-me-ia a muito mais. A pressas para começar.
Evitaria comprometer-me com uma lista fechada e, entregue sem preparação, acerca das minhas negas. Indisponível para o calote.
Sem dúvida que rejeitaria cáries. Azias. Ou indisposições.
Borbotos. Vestuário amarrotado.
Misturas e proximidade.
Borbulhas, eczemas ou escamações.
Peso, só regular.
Ainda bem que não sou rico. Precisaria de, pelo menos, um continente. O que tenho aquém.
Como poderia dizer Woody Allen: exigir-me-ia dinheiro que não tenho disponível.
Ser rico necessita de planificação. Compromisso. Responsabilidade. Imaginação. Atenção a juros e cotações. Deve ser por isso que não há mais.
Remediado parece-me melhor. Isso, não me importava.
Na perfumaria o indivíduo voltou atrás. O saco de cartão bamboleando, derrapando nas calças do fato de bom corte.
«É só um segundinho… esqueci-me de uma coisa. Não se importa pois não?»
Olhei emproado para a esquerda, ameacei sardónico pela direita, fortuna avaliada em milhões, acabada de trocar de mãos, e continuei. Ignorando-o. Impávido. Ilustre.
«Era para embrulhar, se faz favor.», disse, pensando na minha vizinha.
Riquíssimo. Ares de Wall Street. Sem precisar de chauffeur.
Cotação em alta.
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III Charles Bukowski, sacana sem lei: não tente
washed-up, on shore, the old yellow notebook
out again
I write from the bed
as I did last
year.
will see the doctor,
Monday.
"yes, doctor, weak legs, vertigo, head-
aches and my back
hurts."
"are you drinking?" he will ask.
"are you getting your
exercise, your
vitamins?"
I think that I am just ill
with life, the same stale yet
fluctuating
factors.
even at the track
I watch the horses run by
and it seems
meaningless.
I leave early after buying tickets on the
remaining races.
"taking off?" asks the motel
clerk.
"yes, it's boring,"
I tell him.
"If you think it's boring
out there," he tells me, "you oughta be
back here."
so here I am
propped up against my pillows
again
just an old guy
just an old writer
with a yellow
notebook.
something is
walking across the
floor
toward
me.
oh, it's just
my cat
this
time.
Charles Bukowski (1920-1994), Are You Drinking?

Caro Charles Bukowski, (ou devo dizer Henry Chinaski?)
Afinal, quem é? Começo por aí.
Charles Bukowski: degenerado incorrigível, vagabundo, alcoólico, sacana. Nada mais?
Vítima ou agressor?
O que esperar de alguém que bebe com sofreguidão um cocktail com partes desiguais de: Hemingway, Dostoiévski e whisky barato? Nada? Ou tudo?
O que devemos sentir por Bukowski? Repulsa, atracção, nojo, ódio, amor, paixão e tristeza? Pena ou admiração?
Qual foi a sensação de viver sob o signo da transgressão? Andar insurrecto pela vida como num constante combate, sem nunca sair do tapete. Viver em knockout. Excluído do American dream.
A vida tem a forma de um Complexo de Édipo que se prolonga até ao final? Queremos todos matar o pai?
Afinal quem vinha primeiro? As mulheres? O álcool?
Ele é, entre tragos, o instrumento perfeito para o esquecimento, para a tortura, para encorajar, para inebriar? Diminui ou aumenta? Esconde ou mostra?
E era a arte que imitava a vida ou esta que se lhe assemelhava? Sinto que eram uma e mesma coisa. Mas não me quero adiantar…
O que tem de atrativo uma vida errante? Se têm que nos explicar, provavelmente não vamos perceber. Não é verdade?
E o obsceno?
Não consigo imaginar as noites alucinantes de trabalho cujo esforço acabava enviado para publicações literárias independentes americanas. Esperança ou alívio?
Nem a cara (de espanto?) quando chegou a resposta da editora da revista Harlequin, Barbara Frye (que o julgava génio). Ou quando ela, durante a troca de correspondência, declarou que nenhum homem se casaria com ela. E a sua resposta foi: «Eu caso», o que aconteceu após se conhecerem pessoalmente. Durou pouco tempo (o suficiente para conhecer o verdadeiro eu?). O que é que existe para perdurar?
O túmulo de Oscar Wilde foi, recentemente, recuperado porque a pedra de que era feito se estava a deteriorar com as homenagens dos admiradores. Há algo de poético num túmulo que se desfaz com beijos. No seu pode ler-se «Don’t try». Rejeição? Aviso para os incautos? Irónico, não?
Como é irónico um renegado ser apanhado pelo celulóide de Hollywood em Barfly [de Barbet Schroeder, com Mickey Rourke, Faye Dunaway, 1987.], dando a descobrir o que já estava nas obras (mais de 50 livros, não contando com as publicações duvidosas) e leituras (polémicas muitas vezes) feitas nas universidades. Alargando o público. Humanizando?
Não há dúvida de que alguns são feitos de material altamente combustível e ardem até ao final.
É mais seguro não tentar comparar-se-lhes. Evitamos o K.O..
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III Arrependimentos à parte
Digo-vos que assim haverá maior alegria no céu por um pecador que se arrepende, do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento.
Lucas 15:7
Está por fazer a estatística global de arrependimentos. O apuramento da média de contrição diária. O total para um adulto saudável, moralmente empenhado e sexualmente activo, de remorsos. Quem nunca se arrependeu que atire a primeira pedra. É um vicío.
O arrependimento é para quem se preocupa com a absolvição. A sua ou dos outros. Tem target assegurado. É à conta para dar razões. Apresentar justificações. Favorável a quem se escusa. Benéfico para quem evita. Para quem se atrasa. Ou se engana.
É inerente. Natural. Um software visceral com upgrade vitalício, continuamente em funcionamento. Urge o unplug.
Saibam, porém, que o arrependimento não perdoa. E desculpas aproveita-as quem quiser. A vida tem propriedades de irremediável. Inconformável.
Para cada arrependimento ou qualquer «estou arrependido» devia existir uma figura que implacavelmente diria «não vou nisso», «faz-te à vida».
Who cares?
O arrependimento devia, realmente, matar. Não ficar pela ameaça. Pelo bluff. Há razões mais que bastantes. Se o arrependimento matasse era outra conversa. Não devia ser um “se”, antes uma fatalidade, um “já está”.
Vou mais longe. Digo até mais. Por cada vez que nos arrependêssemos por algo que deixamos por fazer ou de fazer devíamos morrer várias vezes. Não tenho dúvidas. Em catadupa. Devagarinho. Uma por cada hesitação e outra, final, em dose mais dolorosa por termos optado por deixar a meio ou desistir.
Olho por olho, dente por dente. Um lex talionis feroz. Por cada comentário interrompido ou calado pesarosamente, uma língua perdida. Por cada passeata abortada chorada, semanas de entrevamento. Por cada doce extra renegado, cinco quilos suplementares nas ancas.
Por cada embaraçante grama de álcool a mais no organismo tombos vitalícios.
Só assim abriríamos os olhos.
O arrependimento e o remorso são castigos leves. Quem tem medo? Uma consciência ao fim de algum tempo deixa de estar pesada.
É de baixa manutenção. São trocos. É algo que se sente, não é preciso fazer nada. É para calões.
Quem se arrepende chora sobre o leite derramado. Um “não tenho paciência” devia ser exemplarmente castigado. Preventivamente. Tal como um “não me apetece”, ou um “não estou para isso”.
Ao primeiro “depois logo faço”, com possibilidade de arrependimento, devia abater-se um raio fulminante sobre o indivíduo.
O arrependimento, tal como as boas intenções só servem para encher infernos. São farinha do mesmo saco.
O arrependimento é uma coisa chata. Em arrependimento não se morre mas vive-se aos bocadinhos.
Deve ser algo a evitar. Ou usado com parcimónia. Só se não houver alternativa.
Em relação ao arrependimento a minha opção é clara. Não tenho dúvidas quanto à prioridade. Prefiro fazer primeiro e arrepender-me depois. Não deixar por fazer. Esse é o pior dos arrependimentos. Mais vale ir a direito. Antes um impetuoso, trilhando caminhos nunca dantes percorridos, desiludido do que um céptico arrependido.
O arrependimento é um luto pelo “não feito”. Um requiem pela opção errada.
Tem o seu quê de Madalena. Devia ser contabilizado. Devia retirar créditos. Ser calórico para fazer engordar. Para ser visível.
O arrependimento agiganta-se a esteroides poderosos de culpa. Banalizou-se. É levado de ânimo leve.
Troco um 10 de Junho e três dias de Carnaval por um dia inteiro sem arrependimentos. Devia haver o dia livre de arrependimentos. Desimpedido. De circulação espontânea. Descuidado. Sem consequências.
Admiro alguém que diz: «Não me arrependo de nada». Mesmo que esteja a mentir. Respeito mais, facilmente, um mentiroso do que um arrependido.
No entanto, tenho de admitir que, se o arrependimento matasse, hoje já tinha morrido, pelo menos, três vezes.
Quem me dera estar a mentir.