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III Os favores são para sempre

Sábado, 27.10.12

Os favores pedem-se sempre da mesma maneira: "Se tu fizesses", "se tu emprestasses", "se tu fosses". Temerosos ou não, desconsideram orgulhos, sem rodeios, com calma ou de uma vez por todas, a possibilidade de fazer sozinho.

Exigem lata, cara-de-pau e só são limitados pela vergonha e pelo "não".

São preferíveis à desistência, ao abandono, à incapacidade e até há coisas que só se conseguem na base do favor, o que os torna importantes. 

   Um favor é de dar um jeitinho, um empurrão, ter uma atençãozinha. É um coça as minhas costas que eu coço as tuas.

Têm um problema, uma dificuldade, um senão. Os favores nunca se pagam. Eternamente por saldar, acabam por ser lembrados. Os favores são para sempre, se calhar não compensam.

Rebentam-nos com a independência, ficam-nos com a liberdade, cortam-nos a emancipação e são uma ameaça para a consciência.

Um raminho de salsa que se pede é um canteiro que se fica a dever. Dois ovos para uma omelete rápida passam com o tempo a uma família de galinhas poedeiras da melhor qualidade com postura média de três gemas por unidade produzida.

Um pacote de natas ou um litro de leite magro de empréstimo e passamos a ter à perna  as fábricas Mimosa.

Um pedido feito em pânico, devido a uma emergência de última hora, para ir buscar o mais novo ao infantário, permanece impagável até, pelo menos, à idade adulta do infante.

   Os favores nunca se pagam. Atiram-nos à cara, colocam-nos aos nossos pés, fazem-se valer do direito de plena retribuição ou restituição, exigem reciprocidade, fazem conta aos juros e acrescentam encargos.

Quem concede favores fica à espera. Não perdoa a quem fica a dever.

    Favores mais vale arranjar maneira de os contornar, de passar sem eles, de não haver necessidade.

   Um favor é sempre maior do que supúnhamos. Paga-se caro. Não se esquece porque tem memória de elefante. Quer sempre algo em troca, lembrando que um amor com amor se paga. Fica a reclamar vez e a dizer entre-dentes: "Não perdes pela demora". São contas por liquidar que vão sempre para lá do que nos coube. Ultrapassam o concedido. Ganham-nos em quilos por regularizar, em força, em tempo.

Com o tempo aumenta a proporção e uma chave inglesa exige retorno em efectivos Bosch e Black & Decker numa relação de 500 para um.

    Um favor é uma dívida por pagar. Um encargo. Uma renda. Exige dar de volta. Retribuição. Pede equivalência, prioridade. Não precisa que o lembrem pois está sempre presente, nunca desaparece.

    Um favor compromete, exige que em certa altura se esteja, se faça, se empreste, se dê, se consiga, se pinte, independentemente da hora, possibilidade, capacidade, porque houve um dia que, um momento em que...

Mais vale comer os Chocapics a seco, esquecer a falta que fazem os coentros.

     Há, ainda, quem mereça mais que lhe façam um favor e há quem passe a vida a pedi-los, abusador, atrás de um favor vindo outro e outro e mais outro. Sem nunca acabarem. Criando hábitos. Continuamente a fazerem-se às nossas costas, às nossas molas da roupa, ao nosso corrector.

    Também há favores mais difíceis do que outros (de pedir e fazer), mas todos apelam à boa vontade, à disponibilidade, entreajuda, solidariedade...

    Pelo dito e não dito, os favores deviam ser referendados. Alvo de uma vacinação. De uma campanha que os votasse ao descrédito. Deviam dar origem a penitência, a castigo dos deuses. Exigir o compromisso de quem concede o favor não poder exigir em troca ou haver número mínimo e com limitações. Existir um máximo de favores que se poderiam pedir no tempo útil de vida.

     Em relação aos favores, prefiro que não mos façam. Se faz favor!

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publicado por Carlos M. J. Alves às 10:35

III Pãezinhos sem sal e croissants

Terça-feira, 23.10.12

O que não faltam para aí são pãezinhos sem sal. Bonitinhos, quadrados e arranjadinhos, passeando-se  insonsos e peneirentos, sem um cabelo fora de sítio, por entre os madraços.

Anjinhos papudos, que nunca aparecem amarrotados, com caras de enjoo e o resto. 

Destacam-se, topam-se, sobressaem. Pelo modo, pelos ares. Dá-se, facilmente, por eles: desvalorizam, rejeitam, negam, bamboleiam-se. 

Dá, imediatamente, vontade de lhes fazer mal, abanar, azucrinar, enfiar um dedo no nariz, tirar do sério, borrar ou, pelo menos, fazer estalar a pintura. Obrigá-los a passar para o lado obscuro da força ou transformá-los em diabinhos, tirando-os do caminho do Senhor. 

É impossível ficar-lhes indiferente. Após o contacto (mesmo que ligeiro) consigo, entra-se em  warp speed e atinge-se num nano-segundo os rigores de um inverno aziado. Complicam com o sistema nervoso. Estão, aparentemente, bem por dentro mas, a morrer por fora.

   Ao contrário do chico-esperto, o pãozinho sem sal faz-se de parvo. Põe cara de "Quem, eu?". De “Não estou para isto!”

Arranca o pelo da venta e é cumpridor, não hostiliza, não se atreve e é, aparentemente, conciliador, diplomático. Mas isso pode ser um engano!

Em relação a ele, fica-se sempre com a ideia de que não vai dar para o peditório. Põe-nos a baixar as guardas, convencidos de que não é concorrência séria e catrapimba, apanha-nos na curva. 

   Não gosto de   pãezinhos  sem sal. Crescem como os outros, aproveitando-se das humidades alheias mas, às vezes, não passam de uma carcaça. Nem vale a pena passar-lhes manteiga, quanto mais pensar em marmelada.

Dão-me seca. Desidrato, rapidamente. Um Sáara de média dimensão desponta, subitamente, debaixo dos meus pés.

Põem um ar desinteressado. Olham de soslaio. Disfarçam. Fazem de conta e são dissimulados, fingidos, sonsos. Por fora parecem uma coisa, mas por dentro são outra. Avozinha  versus lobo mau. Uma Cruella de Vil  perdida de amores por latidos tenrinhos.   Uma freira sem hábito. Percebem a ideia, certo? Aparentemente não são frescos mas... se no melhor pano cai a nódoa, eles são um terylene disponível e sempre pronto.

   Um pãozinho sem sal não contribui. Desdenha. Não se compromete e parece bonzinho. Pisca o olho à direita, acena à esquerda e mantém amizade com o centro.

Pode ser uma Maria-vai-com-as-outras mas, nem sempre. Parece que nos dá razão, mas faz as coisas à sua maneira e, por isso, acaba como figurão.

Dá com uma mão e tira com a outra.

Quer que toda a gente goste dele, mas a maior parte das vezes está-se nas tintas, vivendo de aparências.

   Os pãezinhos  sem sal  não têm idade. Começam no infantário, enfastiados com a cor da chucha e acabam no centro de dia desconfiando da organização do bingo semanal.

   Dizem que não fazem, mas já fizeram, que não querem e já quiseram. Fazem-se caros e ficam à espera de troco.

Fingem que não lhes apetece, mas são sempre os primeiros.

Convencem-nos de que são inibidos, sendo traiçoeiros e falsamente hesitantes.

Fazem-se amigos do amigo.

Ficam-nos, “desinteressados”, com os filhos à sexta-feira à noite.

Aparentam estar perdidos, mas sabem, perfeitamente, para onde vão.

Requerem atenção redobrada, porquanto acabam tricotando casaquinhos com as nossas peles.

   Um pãozinho sem sal é daqueles que se incomoda rapidamente. Apesar de ter facilidade em concordar. Tem peneiras. Manias. Não se mistura.

Aborrece-se. Dá-se bem com pessoas-que-parece-que-não-partem-um-prato e indivíduos de sorriso amarelo.

Um pãozinho sem sal sofre de uma filoxera que o torna enjoativo.

   Os pãezinhos sem sal enervam, tiram do sério. São Cuchi Cuchi Cuchi. 

Uma desilusão: fazem sempre amor e nunca sexo, não vão além do Ginger Ale, não tossem, pigarreiam, não falam, sussurram (pianinho), não dizem palavrões, não têm gases, não arrotam, nem têm borbulhas.

São consensuais.

Não se enfurecem, não se irritam, apoquentam-se.

Têm ideias fixas e impõem limites.

    Os pãezinhos sem sal, as pessoas-que-parece-que-não-partem-um-prato e os indivíduos de sorriso amarelo são de um mundo à parte. Despoluído. Livre de altercações.

São exclusivos. Os mais perfeitos seres humanos. Têm numeração própria, não ultrapassando as 100 unidades.

    Prefiro gente desinibida, desenvergonhada, género Girls just wanna have fun, tipo Good Girls Go to Heaven, bad girls go everywere ou Live fast, die young and leave a nice corpse.

Que é como quem diz, em relação aos pãezinhos sem sal eu é mais croissants.

Já se sabe ao que se vai.

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publicado por Carlos M. J. Alves às 19:04

III À mesa-de-cabeceira

Domingo, 21.10.12

Para quem ainda não entrou no universo dos eBook Readers*,  gerir a mesa-de-cabeceira pode ser um desafio. Autênticas bibliotecas joaninas, em ambiente de repouso, preparadas para acolher dos beatniks à Geração de 70 e conciliar Antero de Quental, Eça de Queirós, Oliveira Martins,Teófilo Braga, Ramalho Ortigão e a Beat Generation.

   Uma mesa-de-cabeceira é uma grande responsabilidade. Não quero nem pensar o que será entrar num quarto em que se abdica de Torga para ter o telefone da rede fixa debaixo do nariz. Diz muito de nós. É diferente ter à distância de um braço John Le Carré ou Raymond Chandler, Goodbye Columbus de Philip Roth ou a trilogia de Stieg Larsson.

Alguém que adormeceu a ler On the Road deixa adivinhar um indivíduo muito diferente do que aquele que optou por José Saramago.

  Uma boa mesa-de-cabeceira deve estar preparada para o imponderável, o inusitado, o inexplicável, pelo que se torna importante contar armas. Ver o que se passa intramuros. Não negligenciar nenhum dos seus hemisférios.

  Deve o abastecimento ser farto tanto em clássicos de todos os tempos quanto em novidades editoriais. Fazer constar o Cânone Literário do Ocidente (Harold Bloom), com a sua lista de referências intemporais e a estreia. O imortal e o autor com tudo para provar. O nobelizado e a jovem promessa. 

  Diversidade e inexistência de preconceitos devem fazer parte de um manifesto a seguir escrupulosamente, como se este implicasse a sobrevivência.

  Uma mesa-de-cabeceira bem recheada é meio caminho andado para uma noite de sono bem passada. Mal é um pesadelo.

Para além das obras em quantidade e qualidade suficientes, deve possuir uma boa iluminação, óculos à disposição (para quem precisar), respectivo produto de limpeza para as lentes com odor pouco pronunciado e marcadores em número suficiente para evitar o sacrilégio de acabar a dobrar folhas como se, apesar de uma escolha cuidada, tratasse de um vulgar chorrilho light . 

   Pelo já exposto se percebe que a compra acertada da mesa-de-cabeceira é uma tarefa difícil e que deve ser compreendida como fundamental mesmo que tenha como consequência uma inevitável desproporção de tamanho em relação aos restantes móveis e objectos do quarto, cómodas e tapetes incluídos. Ter espaço suficiente para não ter que acabar de optar entre a presença de certas monografias essenciais e a medicação indispensável é essencial. Isso pode ser tão devastador quanto ter de vencer obstáculos para pôr o recipiente com a dentadura, em vez de volumes extra de Faulkner. Ou comprometer as orações, abdicando do terço familiar por escassez de espaço no sítio onde se encontra a Dulce Maria Cardoso e Céline. 

   Em relação a mais cuidados, para evitar afrontamentos provocados pelo peso da responsabilidade, desaconselha-se a presença dos Lusíadas, Ulisses e Finnegans Wake por perto do sítio onde se vai pernoitarCamões e James Joyce podem ser demasiado e desinquietar o sono mais profundo. 

Robert Musil poderá, eventualmente, cair mal em horário não diurno pelo que O homem sem qualidades paredes-meias com o travesseiro incitará palpitações incontroláveis.

   Na minha experiência depreendo que não está, também, o espírito sempre preparado para o contacto nocturno com o impressionismo, da mesma maneira que o não está para Cem anos de solidão ou Amor em tempos de cólera, pelo que tanto Gabriel Garcia Márquez como Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud e Verlaine exigem moderação.

Para leitores mais preguiçosos, um tomo de crónicas de António Lobo Antunes à cabeceira deve sempre ser considerado, da mesma maneira que os amantes da literatura de viagens não devem hesitar em munir-se de A Arte da Viagem e O Grande Bazar Ferroviário de Paul Theroux, Regresso à Patagónia em dinâmica Theroux versus Chatwin, Na Patagónia de Bruce Chatwin, Viagens de Marco Polo, Caderno Afegão de Alexandra Lucas Coelho da Tinta da China, Cadernos da Viagem à China de Roland Barthes e Últimas notícias do sul de Luis Sepúlveda. Pelo menos.

Alguma poesia para despertar o amante adormecido deverá ter fácil acesso, pelo que o conselho será o de a deixar à esquerda do candeeiro, se ele se encontrar ao centro da mesa-de-cabeceira, deixando a direita vaga, por exemplo, para Kafka ou Edgar Allan Poe para quem gosta desses territórios.

A competir no ombro a ombro pelo espaço ocupado pelo despertador, poderão muito bem estar Gonçalo M. Tavares ou Mário de Carvalho ou para os facilmente seduzidos pela reflexão os filósofos anglo-saxónicos.

   Felizmente, a Cerne (passe a publicidade) teve o bom senso de guarnecer a minha mesa-de-cabeceira com gavetas. Na última guardo os boxers. Calvin klein tricolor: branco, preto e cinzento. Porque, no meio disto tudo é sempre útil manter alguma decência. 


*Ver Ciberescritas

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publicado por Carlos M. J. Alves às 12:51

III A conversa de chacha

Sexta-feira, 19.10.12

Quem não sentiu já os seus efeitos? Dispensa apresentações e é impossível escapar-lhe. Consideramo-la agitadora, mas não desafia, propriamente. É mais de entreter.

Diz sem dizer. Faz de conta. É circunstancial.

Não tem tema principal ou único: o tempo, aquela jogada, aquele episódio, o político, a novela... isto e outro tanto, servem perfeitamente.

Percebe-se que não é de fiar. Mal começa, deve-se aproveitar para fugir de si a sete pés. Enquanto é possível.  

   Palpites? Não?

Tem tempo certo e altura adequada. Vive de reações. Apercebe-se disso e aproveita-se: das ocasiões, da paciência alheia, de não haver nada de melhor para fazer. Alimenta-se do ar que respira e é um produto dos tempos.

Pressupõe que: ninguém se importa, é o desejável, será uma mais-valia.

E adapta-se. É um réptil com aspirações a mamífero superior.

É predatória, apanha os mais desprevenidos e ataca os mais fragilizados.

   Chega de pistas? Ainda são insuficientes? Continuemos, então.

Forma-se com base em eras de tédio e períodos de solidão. Situa-se na ponta da língua.    

Floresce nos elevadores, velórios, salas de espera, primeiros encontros, situações incómodas, inusitadas, comprometedoras ou confrangedoras e a caminho do bloco operatório para a cirurgia que nos horroriza.

Não marca posição. Surge quando não havia nada para dizer ou quando nem sequer era preciso fazê-lo.

Conta anedotas, faz trocadilhos, perde-se em baboseiras, considerandos e trivialidades. 

Prepara o estômago, faz o aquecimento, abre caminho e embala para uma conversa importante.  

   Já desconfia? Ainda não? Mais pistas? 

Não adianta nada nem acrescenta. É de falar  sem se perceber de quê. É treta. Não diz coisa com coisa. Banaliza, não dá uma para a caixa, não diz nada que se aproveite, algaravia baboseiras e pragueja.

   Então já percebeu do que se trata? A olhar para o título também eu. Mas, se disse conversa de chacha, acertou.

  A conversa de chacha faz comentários de circunstância. Não se percebe o que ela quer. Puxa a interjeição, suscita a concordância, desbarata atenção, não se preocupa com o desenrolar dos acontecimentos, não fraqueja, não desarma nem dá tréguas. É uma espécie de maratonista robusta que termina quando tiver de terminar.

Dela não se tiram lições. Não educa nem cultiva nem se aproveitam informações para decisões vitais ou outras. 

Não serve, portanto, para muito, mas serve para alguma coisa: para desinibir, para pôr de boa disposição, para não estar calado e quebrar o gelo.

   Nela, facilmente, se percebem imprecisões, erros, devaneios, especulações arbitrárias e grosserias. Desrespeita, desgoverna e arrasa a concorrência: a conversa séria. E, por isso, é pouco esclarecedora. 

   Além do mais, a conversa de chacha é espontânea, despreocupada, leviana, evasiva.Também não obedece a regras e não tem pré-requisitos nem exige conhecimentos extraordinários ou experiência prévia. Não fecha portas a ninguém. 

   Em relação à conversa de chacha gosta-se ou desgosta-se. Afinal, serve para ocupar momentos, para matar o tempo, evitar silêncios incómodos.

É mandar bitaites  [com o devido respeito por quem domina a arte].

É epidémica. Alastra numa proporção de um conversador por cada 5 indivíduos à espera do autocarro e um conversador por cada 4, partindo de comboio de Santa Apolónia. 

Pessoalmente desagrada-me. Satura, não há pachorra. Incomoda. Não nos deixa pensar. Acaba com qualquer possibilidade de discussão. É insuportável. E volta sempre ao local do crime. 

Para não falar que, do ponto de vista da comunicação, é um encolher de ombros, um bocejo, um trejeito, um suspiro.

   Por mim a conversa de chacha devia ser expatriada para um país especial: a Chacholândia. Um paraíso para a conversa de chacha onde a coberto de um gosto exagerado por banalidades residiriam, exclusivamente, os apreciadores e os interessados. Todos aqueles que quisessem desfrutar de um diálogo prometedor não teriam aí lugar. Frases começando com "Já viu que...", Nem parece que estamos...", "Já não há remédio para...", Isto cada vez anda pior...", "Repare que..." seriam escutadas em cada esquina.

Enquanto isso não acontece, continua a dita a falar do que sabe e do que não sabe, retirando protagonismo ao pensar no dia de ontem e na morte da bezerra e em altura de nada para fazer ganha adeptos.

Triunfa sobre a falta de interesse e por causa disso envaidece-se. Divaga em toda a sua glória. Exagera. Empola.

   Bem, por falar nisso, e este tempo hã?!

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publicado por Carlos M. J. Alves às 14:15

III "Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar?"*

Quarta-feira, 17.10.12

8.00 A.M.

Manhã chuvosa. Humidade ao rubro e temperatura incoerente. Transeuntes disputando, enérgicos, de galochas e gabardinas tímidas, os mil e quinhentos metros poças de água, até à meta na paragem mais próxima.

   A situação é dramática: óleo salubrificado, motor submergido, gasolina com octanas impotentes, sistema eléctrico alagado e cavalos-força abaixo da possibilidade de arranque.

   Infelizmente nada se estranha e a evidência da possibilidade de ocorrência há muito que se entranhou. E dissuada-se o mais incrédulo dos incrédulos de que o exposto na descrição resvala para a coincidência da semelhança com a realidade e não com a dita propriamente.

   Como não quero ferir susceptibilidades, não vou indicar marca, modelo, nem cilindrada. Até porque penso que não é por aí que se encontra a explicação para a falta de fogosidade, mas antes os tendões por um fio, os músculos exaustos, remando além das possibilidades e periferias à beira de um ataque de nervos. A cor, que nada tem a ver com o problema, é a do luto, embora o nosso relacionamento seja mais de missa do sétimo dia ou toque de finados.

   Estou consciente de que o meu carro, cuja longevidade se perde no tempo, pode incorrer em morte súbita ou enfarte ao nível da junta da cabeça. A situação é mais premente em despertares matutinos molhados como o de hoje, em que a sua colaboração não é evidente por culpa da sua alma motorizada ensopada, a qual acarreta uma combustão divagante.

    A pintura com a epiderme em equimose alastrante dissuade o furto, mas compreendo que a sua idade provecta anterior ao telégrafo é terrível para os carburadores e os quilómetros incluídos no mostrador foram derretendo os centros nevrálgicos automobilísticos.

    Sem inspeções a creditar, seguros disponíveis e pneus pressurizados de fresco, percebo que humidades acumuladas de noites passadas ao relento, degenerescências múltiplas e séculos de maus tratos ao nível da violência doméstica me obrigam a cuidados paliativos constantes e dispendiosos, bem como atrasos frequentes.

    A ruptura é eminente e o ponto morto definitivo uma inevitabilidade. De um momento para o outro, aquele a que de uma perspectiva optimista considero um chaço pode ficar-me nas mãos, soluçando num findar agonizante numa qualquer rotunda nacional ante as buzinadelas cacofónicas insensíveis dos companheiros mais saudáveis e jovens, circulando altivos, com desempenho inflacionado, alheios à sua exaustão final.

Enquanto não chega a extrema-unção, continuo de pessimismo embaciado, jogando com as probabilidades, a arriscar no seu ímpeto epiléptico e poderio desvitalizado, fiando-me na sua capacidade mínima para vencer as distâncias e me levar ao destino.

   A razão porque falo nisto é para saberem que se um destes dias não me encontrarem por aqui posso estar com ele nas urgências, consigo encomendando a alma ao criador.

 

* Apesar de ter, modestamente, consciência da improbabilidade da confusão, só o título é de António Lobo Antunes. Com o pagamento respectivo e devido em aspas efectuado. O seu a seu dono.

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publicado por Carlos M. J. Alves às 10:57

III Vontade de viver

Domingo, 14.10.12

Desconheço se é por adubamentos em falta, por não ter tempo para falar com plantas, se por pujança do calcário na água ou sobejo de cloro, mas a verdade é que lá em casa não frutificam árvores das patacas. O único supervivente vegetativo que sobrevém fotossinteticamente à minha inépcia será um cacto fortuito mais caprichoso.

A minha fonte de rendimento é, unicamente, o trabalho o que oblitera, visivelmente, os meus rendimentos.

A juntar à labuta contraproducente e à desflorestação da varanda, soma-se a minha incapacidade para a poupança que só é comparável à facilidade com que deixo escapar fundos por entre os dedos.

  Às vezes tenho a nítida sensação de que o dinheiro foi uma invenção para que continuo impreparado. Sou incapaz de lhe dar a volta pois, nitidamente, não resulta comigo. Não fui incluído no projecto nem constei do esboço. Estou aquém do desígnio. Faço parte das excepções, das contra-indicações. Ou, pelo menos, até hoje não compreendi o conceito.

Há anos que percebi que nunca conseguiremos manter uma relação séria. Sempre de costas voltadas, incapazes de partilhar o mesmo espaço, dividir o mesmo leito e ter contabilidade comum.

O litígio deu origem a divórcio, sem possibilidade de reconciliação.

   Podia procurar frases batidas que jogassem a meu favor mas, a verdade é que o meu problema em relação a poupar dinheiro é que embora perceba a necessidade, não vejo como. Há um corte epistemológico entre o “porquê” e o “como”. 

  Tenho esperança de que um dia acorde enfartado e a não precisar de comer, a odiar beber, a não ver necessidade em andar vestido e ler, pronto para dar filhos para adopção e de proventos salvaguardados.

Um dia em que não sonho com carros com porção de cavalos suficientes para abrir uma coudelaria ou anseios gourmet.

   Percebo que sozinho não vou conseguir, pelo que a opção é acabarem-me com as vontades ou tudo quanto corteje intenção e objectivos próprios.

Operem-me. Arranquem-me o hipotálamo à bruta. Violentem-me o tálamo. Despedacem-me o hipocampo. Limitem-me as circunvoluções cerebrais. Fiquem-me com um hemisfério com opção para dois lobos. E vendam-me tudo quanto seja neurónio.

Aproveitem para arrebatar o resto. Vive-se bem sem pulmões e rins. Fígado, logo veremos! Levem-me pernas e pés para não ter de desembolsar dinheiro com calçado.

Estou determinado. A gente arranja-se com pouco se se puser a isso. E sem vontade de comer, beber, de me vestir, de cultura descurada, sem filhos e casa, as dificuldade económicos ficariam resolvidas. Acabar-se-iam as minhas lamurias acerca de impostos. Nunca mais ninguém me ouviria falar em escalões de IRS. Terminariam as preocupações com o IMI. Estaria de acordo em relação a mais austeridade. As agências de rating seriam minhas amigas. E o governo independentemente de qual teria, sempre, o meu apoio não obstante as medidas. Seria, sem dúvida, uma pessoa melhor. Preferível, pelo menos. Andaria mais leve, sem necessidade de usar carteira e porta-moedas.

   Salvem-me! Acabem-me de vez com os egoísmos das vontades. Apetecer é desnecessário. Querer é pouco vantajoso. Desejar, ambicionar, aspirar, pretender é inútil. Mais do que isso é escusado e supérfluo.

Quem vegeta não desembolsa porque não come, não bebe, não lê e não precisa de filhos.

Jejum, desidratação, perda de hábitos de leitura são a minha estrada para Damasco. O meu roteiro para o aforro. Serei o sem-abrigo, maltrapilho, sem amigos e filhos com quem gastar dinheiro, amealhando e de punhos cerrados e dentes à mostra contra a vontade amputada. Progressos contabilizados em côdeas, lêndeas, meias sardinhas, arrobas por consumir e volumes por ler.

   Não será fácil. Prevejo amuos, arrufos e agastamentos. Urgências de mudança e renúncia a hábitos antigos. Mas, estou preparado para a briga e já vejo a conta bancária a aumentar. Dilatando de economias. Novos cartões de crédito exclusivos à vista. Já estou com o livro de cheques preparado.

  A vontade é forjada, maquinada, fabricada, criada, engendrada só para nos arruinar economicamente. É atrevida, afoita, insolente, desaforada, rabiando constantemente com o bom-senso. Pesa-nos no bolso. E faz-nos errar escolhas.

Quanto mais cedo o percebermos melhor.

Ponham-na de castigo. Puxem-lhe as orelhas. Cortem-na aos bocadinhos. 

Pensando bem, o melhor será tirá-la toda. Arranquem-ma. Incinerem-na. Façam-na desaparecer.

Certifiquem-se antes de lhe voltarem as costas de que foi, completamente, extirpada!

Mas, já agora, deixem-me um restinho. O que é necessário para querer viver.

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publicado por Carlos M. J. Alves às 14:40

III Ter ou não ter estômago

Terça-feira, 02.10.12

Ter ou não ter estômago vai da atitude. Ter estômago é contar com ele. Tê-lo disponível como confidente 24 horas por dia e preparado para o pior. De sobreaviso.

  Embora possa parecer estranho uns têm mais estômago do que outros. Ultrapassa a questão anatómica. O de uns enche mais depressa do que o de outros. O desses não está para aturar. Não tolera desaforos. Deixa ir até um certo ponto e depois não se aguenta. Diz, imediatamente, o que tem a dizer. É desbocado. 

  Primeiro vem o estômago, depois a moral, dizia Bertolt Brecht. Primeiro vem o estômago? Será? O estômago pode ser o sítio onde reside a nossa consciência. Como se ele precisasse de ser digerida. Metros quadrados de arrumação sem fim. Uma arrecadação moral espaçosa.

  Uma consciência intranquila é um estômago em sobressalto, ardendo em labaredas altas, consumindo-se num fogo eterno. Não se acalma com pastilhas ou chazinhos. Soluça e ganha azia. É sensível. Não consegue engolir tudo. Há um limite para o que consegue suportar, para o que cabe em si. Não resiste a tudo. Insurge-se. Incha da acidez e cede nas costuras. Uma consciência incomodada apoquenta tanto quanto um estômago pesado. Não se sabe onde acaba um e começa o outro.

    Com a idade um estômago vai ficando com menos paciência. Dá sinal. Ronca. Ressaca mal à medida que vai ficando mais velho. Anda às voltas, centrifugando traições, desaires, trocas, atropelos, despromoções, pesadelos. Destrambelha. Barafusta. Farta-se. Exige mais explicações. Vai aos arames.

   A história do estômago está repleta de gente suando fininho, alguma sem coluna vertebral. Estômagos chorando lágrimas de crocodilo ou de lata, suportando horrores.

   Um estômago é de pôr para dentro e engolir em seco. Até ao dia em que rebenta. Mesmo o estômago mais distraído se apercebe do que o rodeia e guarda gastricamente recordações que duram uma vida. Das ânsias do exame de condução ao nascimento do primeiro filho. É nessas alturas que se percebe a “opção” evolutiva da vaca por quatro estômagos. Do ponto de vista humano, um estômago sobressalente seria um extra para digerir os engulhos que vão surgindo. Mas as coisas não evoluíram nesse sentido e resta-nos um estômago para dar conta do recado.

   A verdade é que um estômago tem queda para ter dores de barriga. É da sua natureza.

Incomoda. Tem crises. Sobressalta-se. Começa a ferver.

   Consequências?

Um estômago preocupado deteriora-se, envelhece rápido, especialmente em alturas de apertar o cinto. Fica depressa com cabelos brancos. Vai-se abaixo.

Deixa-se engordar. Ganha barriga.

Um estômago embrulhado é um estômago em apuros, emitindo um SOS, esperando que lhe salvem a alma.

As finais europeias são mal-estar garantido para o mais resistente dos estômagos. Exemplos? 

 

                    1964/65 Inter-Benfica, 1-0 (Taça dos Campeões Europeus)

                    1983/84 F.C. Porto-Juventus, 1-2 (Taça dos Vencedores de Taças)

                    2004/05 Sporting-CSKA Moscovo, 1-3 (Taça da UEFA)

 

Mas também o Tratado de Tordesilhas após a descoberta do Brasil pelos portugueses dá cabo de um estômago.

Para não falar dos triângulos amorosos, que o digam Brad Pitt, Jennifer Aniston e Angelina Jolie ou Woody Allen, Mia Farrow e Soon-Yi Previn. Não há estômago que resista!

  No que me diz respeito, o meu é mais de dar dores de cabeça, por ser temperamental, ter um sentido apurado para as injustiças e boa memória para as guardar em local à mão e sem humidades para se vingar na primeira oportunidade. Mas não me posso queixar. Há estômagos mais sensíveis que exigem serem levados nas palminhas. Não o meu, que aguenta mesmo os embates mais fortes.

   Um estômago tem subtilezas. Um vazio não serve para tomar boas decisões, por exemplo. 

Um bom estômago não se compra por catálogo. Os mais frágeis sucumbem às mãos dos temperos e condimentos. Autênticas guerrilhas interiores. Assassinados por malaguetas sanguinárias. Perseguidos por fritos oleosos. Guisados gordurosamente densos. Pétain entrando-nos pelas entranhas e nós resistindo à potência estrangeira invasora.

Mas, também, conversas desagradáveis, contas por pagar, filas de espera, trânsito congestionado, companhias indesejadas entopem o carreiro intestinal, sobrecarregando o estômago mais organizado no normal despachar de serviço.

   A sorte é ter um estômago sem vergonha ou duro de ouvido que não se aperceba das coisas e que nos deixe em paz. A ignorância não é boa conselheira, mas tem a vantagem de não provocar ardores nem irritações estomacais.

   Mas mais do que um estômago que aguenta tudo, bom é ter um grande par de tomates.

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publicado por Carlos M. J. Alves às 14:35





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