Máquina da Preguiça®
O texto é uma máquina preguiçosa [Umberto Eco]
III Tecnologicamente activo
Com a tecnologia vamos mais longe, mais rápido e mais alto. O planisfério ganha contornos de mapa de aldeia, o longe torna-se perto, o intransponível relativiza-se. Não há vertigens nem cansaços desnecessários. Enjoos, desidratações, escaldões, ou o embaraço de ter de inventar uma desculpa com a pessoa à nossa frente.
A tecnologia poupa-nos energia e tempo. Evita o nosso desconforto, o jet lag... Vai e volta por nós, chega lá mais depressa e fresca que nem uma alface.
Faz as contas por nós, corrige-nos os erros e, ainda, tem tempo para a prova dos nove. Organiza-nos a vida e trabalha para sermos mais populares. Com ela a Austrália fica ao virar da esquina e Marte aparenta ficar nos arredores.
A tecnologia faz-nos chegar aos dois metros com um clique. Apresenta-nos como Mr. Universo e tira-nos quilos sem complicações exigindo-nos, unicamente, a actualização do estado.
De uma maneira geral, oferece-se para as coisas chatas. Não há como não gostar de si.
Sou tecnologicamente activo há anos. Vivo de antenas apontadas e entre pixéis, rodeado de bytes e informação a circular vertiginosa à minha volta. Tenho cabos, fichas, monitores e teclados, telemóveis de gerações ultrapassadas, em número suficiente, para o comprovar.
A tecnologia e eu temos uma amizade antiga que foi evoluindo transístor a transístor, em colorido technicolor, estereofonicamente sonora e a custo de muita Ram. Com altos e baixos que é como quem diz com upgrades e downgrades.
Não tem sido fácil nem barato e tem exigido actualizações constantes, mas em termos de saldo continuo a trocar a caneta pela stylus a preferir a folha de Word ao caderno de linhas e a de Excel ao quadriculado em papel.
O meu sonho é acordar e com um piscar de olhos a água do banho começar a correr. Um bocejo e a roupa aparece escolhida em cima da cama. Um ronco do meu estômago e as torradas estão feitas e o café da manhã preparado.
Ao longo do dia situações idênticas vão sucedendo, até chegar à noite e um suspiro abrir a porta do minibar e lá de dentro sair um gin tónico magnífico, demonstrando, mais uma vez, que entre o estar vivo e o estar morto fica, claramente, o estar online e offline, plugged ou unplugged.
Obviamente que para alguns sou dependente, obcecado. Perfeito para uma fogueira anti-progresso alimentada por adoradores do ábaco. Alvo de chacota de ímpios que vivem numa zona aparentemente anti-wireless e sem preocupações com velocidade de rede.
Imunes a downloads e uploads. Avessos ao contágio internauta. Circulando em contramão ou optando pela nacional em vez da auto-estrada da informação. Acusando-me de falta de contacto olhos nos olhos. Descrevendo-me como um inspector Gadget com porcas e hélices saindo dos sítios mais improváveis e incómodos.
Ora isso é para mim algo incompreensível. Não gostar de tecnologia é não admitir que se desenvencilhem por nós. Até porque a tecnologia cala e consente. Sempre de cara alegre. Tem preço, mas não exige de volta, faz no nosso lugar, dá o corpo ao manifesto, mas não fica à espera. Uma secretária incansável e sem horário. Um trabalhador sempre disponível. Um funcionário que abdica das férias, feriados e descanso para nos oferecer tempo extra.
Em suma, para mim não ligar a tecnologia é não gostar que o ajudem. É contrariar milhões de anos de evolução preguiçosa.
Não sei o que pensar, mas convenhamos, sem tecnologias de que outra maneira nos poderíamos ter conhecido?
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III Frase do dia
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III Quatro anos de furacão Catarina
Como sobreviver a um furacão? Bem, não sei em relação aos outros, mas no que diz respeito à minha filha mais nova enfrenta-se fazendo gugu-gaga, com colinho e cantarolando os maiores êxitos das melodias infantis. A princípio, pelo menos. Nos dois primeiros anos. À base de canal Baby e Panda. Depois passando a Disney Channel e Nickelodeon. Que é como quem diz: Noddy, Ruca, Os mundos de Mia, até chegar a O meu cão tem um blog.
Ao contrário dos furacões normais não existem lugares mais abrigados nem medidas de salvação perfeitas. A sobrevivência exige fraldas secas e papa a tempo e horas, nervos de aço e capacidade de aguentar meses sem dormir.
Cá em casa o nosso furacão tem quatro anos. Um cataclismo gostoso que faz hoje anos. Uma intempérie com tanto de chorona como de bem-disposta. Sem momentos acentuados de calmaria. Nem mesmo quando tudo era atingido gatinhando ou sob a companhia auspiciosa de barbies e da sereia Ariel. Levando centrifugamente mesas, cadeiras, legos e palmeiras pelos ares.
Nós habituando-nos, o melhor que conseguimos, às constantes mudanças atmosféricas e aos remoinhos agitados de mau feitio.
Temos escapado à justa. Um furacão é sempre um furacão!
Mas, também, não merece a pena fazer uma tempestade num copo de água.
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III Ser homem prejudica, gravemente, a saúde
Acordo com umas dores de costas agonizantes. Agulhas espetando-se, bruscamente, em zona dolorosa, tricotando em mim um naperon penoso entre os meus bocejos.
Faço acusações a uma corrente de ar antiga mas traiçoeira e a custo consigo levantar-me.
Sinto que estou em lista de espera para alguma coisa terrível à medida que vejo o naperon crescer. Desgastado e exausto resisto mas, a minha energia foi-se. Apercebo-me em pânico do meu enfraquecimento, tremo de frio iminente e empalideço a um ritmo constrangedoramente anémico, entre suores frios a caminho.
Já fiz as contas à pulsação e estou abaixo do exigível para alguma coisa de bom. Antecipo inflamações e chagas. Conto sinais e pontos negros, enquanto as espero, para me distrair, mas há uma coisa que me prejudica, grandemente: sou homem.
A doença tem a ver com sintomas, desarranjos e acidentes mas, também é uma questão de género. Ser homem conta. Pesa. Prejudica. Um homem não está preparado para a doença. Tem saúde mais frágil e imunidade débil. Demora mais tempo a curar-se.
Um homem sofre mais. Sente mais do que uma mulher, tem mais recaídas, está mais exposto a doenças reais e exageros, a gravidade psicológica é superior.
Em relação à doença o homem sente dor antes da pancada, grita ai antes de ser preciso, tem febre antes do aumento da temperatura, deixa acabar o mundo se lhe faltarem com os caldos de galinha.
O homem entrega-se ao padecimento. Exagera. Acrescenta dificuldades, acentua fogosidades e faltas de ar, prolonga sintomas, assaca consequências inusitadas, reproduz bactérias e vacila na imunidade. Acha que não vai escapar e entrega-se à mercê da misericórdia imunológica.
Brada apocalíptico aos céus, anunciando desgraça enquanto revê a posologia. Fica doente antes de estar: chega à enfermidade primeiro que o vírus e retarda o batimento cardíaco por via das dúvidas.
Muda a residência para as urgências, auto-medica-se e oferece-se para exames. Tenta tisanas e inalações, lamas, exposições ao sol e geografias ricas em iodo, medicinas alternativas e convencionais, conselhos fraternos, recomendações de revistas, bulas comprovadas, tratamentos por testar, procedimentos experimentais. Entrega-se ao impossível!
Mas, o homem aproveita-se da doença. Faz-se ao mimo. Garante que não sobrevirá à gripe se não tiver companhia. Clama por auxílio constante. Reclama ajuda omnipresente. Afirma que o mau estar não cessará se não tiver direito ao comando da televisão em exclusividade. Chantageia que bom bom, para acabar com a falta de apetite, era o seu prato favorito. Que uma almofada extra faria maravilhas e só mais um cobertor lhe acabaria com as tremuras. Que, também, não diria não a um chá quentinho, mas infelizmente a sua imobilidade forçada de múmia a tudo o impede.
De uma coisa não há dúvidas:
em relação à doença o homem é uma menina.
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III Um dia igual aos outros
Uma mentira repetida mil vezes torna-se uma verdade
Joseph Goebbels
Hoje é dia das mentiras. Não me diga que acreditou que este ano era feriado?!
Diariamente biliões de mentiras são ditas e repetidas. As vítimas são incontáveis: padecentes do conto do vigário, iludidos por projectos seguros, aventureiros de El Dorado, apostadores de chaves infalíveis, apaixonados de amor eterno, indefectíveis da confiança, sonhadores.
Não restam dúvidas de que a mentira se trivializou. Mesmo com perna curta, até ser apanhada, consegue chegar longe e aliciar os incautos.
Neste preciso momento em alguma parte alguém está a dizer uma: juras de amor falsas, promessas que ficarão por cumprir, entregas por fazer, aumentos por atribuir, datas que falharão, acordos que serão violados, objectivos que não vingarão, cavalheiros que se demonstrarão crápulas, virgens que não passarão de rameiras, ouro que se revelará fancaria.
Gente há que se deixa ir na conversa, encolhendo os ombros e estatelando-se na esparrela. Vivendo uma ou numa mentira. Abrindo mão da realidade por troca com a ilusão.
Se o mundo é um palco e representar é fingir a mentira, também, faz parte da representação, acharão alguns.
A mentira mina a confiança. Infiltra-se. Disfarça-se e aproveita-se da credulidade, da confiança, das guardas em baixo, da distração e consegue o que quer.
Mas, a mentira também concede estrelas ao hotel e nota à avaliação. Põe-nos a correr mais rápido e durante mais tempo. Melhora-nos o handicap. Faz-nos ganhar tempo. Avaria-nos a impressora, perde-nos rede, mata-nos familiares e põe-nos onde não estamos. Tira-nos peso, faz- nos mais inteligentes, apresenta- nos como mais novos e é capaz de nos garantir maior importância. Acrescenta-nos cilindrada no carro, arranja-nos namoradas modelo e põe-nos a fazer compras na 5ª Avenida. Aumenta-nos o rendimento, consegue-nos votos, garante-nos habilitações, baixa-nos o défice e faz-nos disparar a produtividade e as exportações.
É por isso que uma boa mentira passa despercebida, soa-nos bem e dá-nos a volta. Não se dá por ela. Assume-se como verdade e tenta fazer as suas vezes.
A mentira é a peta, a meia verdade, o embuste, a burla, o escândalo. Outras vezes, só o dado como já provado. Faz estragos!
Também há as misericordiosas, mas as piores (com melhores resultados) são as que passam despercebidas, as que não se dá por elas.
Em suma, mentir melhora, modifica ou altera as coisas, mas nunca deixa como está ou como devia ser. Tem contornos de uma fuga à verdade. Um menosprezo pela exactidão.
Um mentiroso é um charlatão. Ludibria-nos, manda-nos noutra direcção, conta-nos de outra maneira. Mas, também, pode ser um artista fazendo- nos acreditar no improvável e fazendo-nos sentir melhor.
Deixe que lhe diga que essa côr lhe fica magnificamente. Acredite!
Agora repita comigo: a crise acabou, a crise acabou, a crise acabou, a crise acabou... mil vezes.