Máquina da Preguiça®
O texto é uma máquina preguiçosa [Umberto Eco]
III Agora só se for depois
Quantas vezes já não hesitou ou deixou de fazer por achar não se tratar do momento certo?
Se perdeu em considerações, entretantos, desembalou e embalou para, finalmente, renunciar definitivamente?
Como quem teme ir afrontar os astros se for em frente, afundando dois Titanics à sua conta.
Sentindo nos ossos um vento que se levanta nas rótulas, uma humidade que se instala no azimute lombar ou uma tempestade psicológica que se forma no enclave parietal.
Ou põe a hipótese, como quem reinventa o método experimental, de que em relação ao que pretendia haverá, certamente, uma altura mais adequada como desconfia ser o caso para ter varicela, andar de olho nos dentes do siso ou tirar as amígdalas.
Sem ter consciência de que, no fundo, evocar um mau timing é como quem diz: "O que não tem remédio, remediado está".
Haverá circunstâncias certas para o prazer e para o trabalho da mesma maneira que, e embora esta não seja a melhor escolha de palavras, tenhamos que dar a mão à palmatória que há um momento em que a próstata faz parte mais evidente da nossa vida?
Ou, quando mesmo prendendo a respiração, não conseguimos disfarçar o globo Michael Jordan Special que dá guarida ao nosso umbigo mais do que um melão em disputa de sevens será melhor não pensar em galanteios?
Não é o momento certo, anda nas bocas do mundo, de cá para lá, como uma chiclete abusada e deglutida por um palato debochado viciado em hálito mentolado.
Não é o momento certo para uma imensidão de coisas. Para avançar, para dizer sim ou não, para entusiasmos, para arriscar. Não é o momento certo porque nos falta altura, peso ou idade. Por estarmos fora de prazo ou ainda não termos lá chegado. Por nos terem dito isto ou aquilo, termos pressentido aqueloutro ou adivinharmos sabe-se lá o quê. Também não é o momento certo porque nos sobra que fazer ou porque nos sabe bem não ter de.
Se é certo que quem não arrisca não petisca, o seguro morreu de velho e no fim são poucos os que não pedem tempo extra, concluímos, como consolo.
Não é o momento certo porque nos falta o interesse ou porque temos outros. Porque não estão reunidas as condições, não eram bem aquelas ou são mesmo essas e cheira a esturro. Não é o momento certo porque não era bem aquilo ou não nos podemos dar ao luxo. Não é o momento certo porque os contras ultrapassam os prós e o negativo foi superior ao positivo. Porque não podemos aceitar senão ficamos a dever favores e como é sabido não há almoços grátis e depois temos a obrigação e e e e e e…
Não é o momento certo, é um agora não dá. É de quem está convencido que o tempo não está a seu favor ou teme enfrentar o oceano e prefere ficar em terra.
Justifiquem como anti-precipitação, mas se pretendermos chamar devidamente o nome às coisas é ter medo do ridículo por sentir sobre si todos os olhos de uma enchente no estádio da Luz em noite de jornada europeia, fugir às responsabilidades como da fogueira da inquisição espanhola, estar de pé atrás como quem adivinha areias movediças iminentes, arranjar desculpas como quem jura ter avistado o Bigfoot.
Se quisermos ir mais longe, para zonas francas mais próximas daquilo de que realmente se trata, temos de admitir que é uma merda de uma perda de tempo. E uma atitude de marinheiro de água doce temendo alergias do sal do mar, de quem vê rugas onde não as há, dá o corpo ao manifesto alheio, se voluntaria para as dores de terceiros.
De quem em relação a ele – o tempo – esquece o mais importante: ele passa a correr.
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III Nada se perde, tudo se transforma
Talvez haja um tempo próprio. Alturas adequadas, situações mais aliciantes, mais um aperto e um vagar que facilitam. Uma espécie de pré-requisitos para a mudança que impliquem que a partir de certas idades ela traga mais complicações, eczemas e febres súbitas. Talvez se passe da idade e se fique agradado com o carácter definitivo da nossa natureza, temendo, bonacheirões, pela nossa maneira de ser que consideramos, orgulhosos, obra acabada.
Razões mais do que suficientes para não querer mudar.
Estou habituado às cores usuais, às mesmas marcas, sabores e odores. Honro tudo o que é o de sempre e repugna-me o passageiro das modas. Faço questão no que é do costume e não ligo a tendências.
Mudar é uma incógnita. Tentativas que podem acabar falhadas. Perdem-se garantias. A mudança destabiliza, desarruma ou, pelo menos, troca o sítio às coisas. Uma canseira que exige coragem e obriga a reconsiderar os gostos, as atitudes, a forma de ser e pensar.
Tudo começa com uma vontade que não tenho. Porque mudar é um recomeço ou, ainda pior, um início. Um rompimento com uma certa familiaridade gostosa, com que bem ou mal tudo lá ía funcionando. É uma traição ao já feito, ao já conquistado, ao já conhecido. É um certificado de menoridade passado ao anterior. Uma ruptura sem garantias.
Na maioria das vezes são os outros que instigam em nós a necessidade (pouco ou nada evidente para nós) de mudança. Devido ao convívio que mantêm connosco. A nós falta-nos a paciência e disponibilidade, mas eles, atiram-nos para um tribunal identitário implacável, contestando rabugices e subtraindo defeitos. Do seu julgamento sanguinário, sem recurso, retiram (para nossa frustração) como pena a obrigação de nos civilizarem, amansarem e amestrarem.
Bem-intencionados, pedem-nos que mudemos hábitos de anos sem opção de pegar ou largar ou quem está mal que se mude. Em nome de um ar mais moderno, jovial ou de uma maior facilidade no trato.
Idealizam-nos uma nova identidade. Um eu que na maioria dos casos é deles. Preparam-nos para uma recauchutagem urgente e indeclinável, lançando-nos, sem comiseração, num degredo de carácter, um exílio forçado do nosso temperamento. Tiques e manias de sempre deixadas ao abandono. Fatias e mais fatias de uma personalidade arduamente construída contestadas. Um remexer numa estrutura frágil que pode fazer ruir todo o edifício. Uma aparadela nas medidas e organização. Alternativas envenenadas para as nossas falhas.
A mudança assusta e é arriscada porque mexe no andar da carruagem. Para funcionar tem de ser voluntária e a minha opção, temendo o descarrilamento, é clara:
Não, não quero mudar, muito obrigado!
Até porque depois de tudo contabilizado, facilmente se conclui que os ganhos são mínimos. Mais uma simulação do que uma evolução. Pormenores. E, no fim, há sempre um perigo:
há coisas que nunca mudam.