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III Carta a Miguel Esteves Cardoso

Domingo, 17.06.12

Caro Miguel Esteves Cardoso (MEC)

 

Sem querer fugir ao assunto, começo por dizer que não o conhecer pessoalmente é um caso de manifesta injustiça.

Tenho livros seus lidos em quantidade suficiente para o merecer. Conhecimento de crónicas bastante para isso já ter sucedido.

Horas de Noite da Má-Lingua. Visitas ao Pastilhas.

Fui assíduo na leitura d' O Independente e fiel comprador da revista K. Consulto com frequência Em Portugal não se come mal e Com os Copos. Prefiro as suas traduções das peças de Samuel Beckett.

Por causa da sua letra ainda ouço Foram Cardos Foram Prosas (com música de Ricardo Camacho, interpretada por Manuela Moura Guedes).

O que concede ainda mais força à ideia de injustiça. Penso que pelo menos um gin tónico consigo já se justifica há anos.

   Posso ser acusado de exagero, de ser tudo demasiado aparatoso. Mas em relação a certas coisas, tenho mau perder. E não concordo, em absoluto, com certos privilégios.

   Se a memória não me falha, também nunca nos cruzámos. À excepção de uma vez nas Amoreiras. Que eu me recorde! Penso que confirmará.

Nunca fomos além de um «com licença». Mas  é possível simpatizar com alguém sem nunca o ter conhecido, verdadeiramente. Concordar com as suas ideias só por as ter lido num jornal. À primeira. Dispensar troco. Achar que sim senhor. Querer tudo de bom para si, só porque sim. É o que sucede no meu caso. No nosso…

Essa é, pelo menos, a minha opinião. Podemos construir um mundo inteiro baseado em suposições e ele funcionar. Ou, pelo menos, termos essa sensação. Mesmo que tudo não passe de uma ilusão. As certezas estão sobrevalorizadas.

   Sei que tem passado um mau bocado. A razão é do conhecimento geral. Não são precisas mais explicações.

Que tem sofrido. E eu tenho sofrido junto. Menos, como é óbvio. Por simpatia. Por ter a sensação de que nos conhecemos desde sempre. Sem nunca nos termos cruzado. Por pensar que lhe estou a dever. Por achar que consigo sentir, também.

   Foi graças a si que achei que também conseguiria escrever. Penso até que tem uma geração inteira (pelo menos) que o responsabiliza pelo mesmo.

Por sua causa deixei de ter tento na língua. Senhor do meu nariz. Passei a não comer e calar. Aprendi que ninguém merece ser, antecipadamente, levado em ombros. A escrever sobre isso. Como se fosse uma emergência. Foi a altura em que, provavelmente, mais me cresceu pelo na venta.

Acabei a ler nas entrelinhas. Mais desinibido nos temas. Desenvolto na gramática. Atento à sintaxe. Escrever parecia fácil. Por sua causa parecia uma coisa simples. Depois percebi que não e levei isso um bocado a peito. Como se tivesse invadido uma festa para a qual não fui convidado. Temi não ter entrado com o pé direito. Ser fruto de um erro de casting.

Já lá vão uns anos.

Senti-me traído. Capaz de vazar os próprios olhos. Não se ilude assim as pessoas. Só porque somos bons. Deve-se explicar que não é para todos. Que não funciona assim. Durante muito tempo acusei a quebra do voto de confiança.

   Demorei algum tempo a perdoar-lhe, mas aprendi consigo uma coisa ou outra sobre o amor e, embora tenha resistido, isso acabou por acontecer. Que é fodido. Para começar. E isso compensou tudo o resto. A desilusão anterior. Afinal, fui eu que me pus a jeito. Como costuma dizer: «a culpa é sempre nossa.» E talvez o segredo seja mesmo a alma do negócio.

   Mais recentemente, enquanto sofria consigo, percebi pelas suas palavras que amar nunca deixa de ser fodido. Por esta ou aquela razão. Já desconfiava. Mas há sempre uma lição ou outra a tirar. A aproveitar dos outros. De si.

   Coragem MEC, sem a sua ajuda nunca teria conseguido escrever esta carta.

   Obrigada por tudo. 

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publicado por Carlos M. J. Alves às 10:00


23 comentários

De lwillow a 17.06.2012 às 16:37

http://www.youtube.com/watch?v=rfbmf9OHJo8&feature=player_embedded#!

De Manuel Pereira de Sousa a 19.06.2012 às 00:18

Depois disto o Miguel Esteves Cardoso vai ter mais consideração por alguém que lhe seguiu todas as pisadas.

De Mathilda a 19.06.2012 às 05:25

Se gostei da carta que o Miguel escreve a Deus, tenho de elogiar a sua. Quando o sofrimento bate à porta por uma mesma causa, temos de compreender e ajudar em vez de julgar.
Tanto julgamento feito por um desabafo que ele teve com Deus. Quem nunca os teve? Quem nunca sentiu a revolta inexplicável quando se sabe que alguém que se ama vai partir? Se lamentamos a dor interior de pessoas ditas "anónimas", devemos virar as costas aos que fazem parte da nossa vida de uma forma ou de outra?
O que tem o Miguel a aprender? A amar ainda mais? Qual a blasfémia que ele cometeu conforme foi tão falado? Ou vivemos todos num Planeta em que a frase "revolta com Deus" não existe? Vamos ser mais conscientes e saber interpretar o que está por detrás de cada palavra...
Ou será que desabafar com Deus é "pecado"? O Miguel fê-lo, como todos nós o fazemos. Uns em silêncio, outros exteriorizando das mais diversas maneiras...
Realmente o Amor é incomodativo para quem não sabe amar!

De rui.freitas a 19.06.2012 às 22:24

Realmente o Amor é incomodativo para quem não sabe amar!
Assim é, de facto; e quando esse Amor é maior do que o Mundo - como é o de MEC pela esposa e é (foi) o meu pela minha falecida mulher, então, está tudo dito.

De José da Xã a 19.06.2012 às 08:52

Bom dia,

gostei imenso da sua carta. Um exemplo de tenacidade e coragem.
Obrigado pela partilha.

De Ella a 19.06.2012 às 09:19

Sinceramente, não sei que dizer. Contudo sinto que devo escrever alguma coisa.
O MEC acompanhou-me, ou acompanhei-o, durante anos. Anos de faculdade e de vida adulta. Diverti-me à brava lendo as suas crónicas. Chorei horrores lendo o "Amor é fodido".
Agora, quando pensava que era um pouco estúpido e leviano admitir que sofria por o saber sofrer, encontrei esta carta e percebi que há mais (ir)racionais como eu. Mais pessoas que sentem afeição por alguém que não conhecem. Que o consideram como parte da família ou do grupo de amigos que gostaria de ter. Quanto mais não seja, mentalmente.
Bem haja.

De Ilídio Rito a 19.06.2012 às 10:56

Também devo alguma coisa ao MEC. Sempre apreciei a sua escrita. Também o não conheço pessoalmente. Pelo que depreendo da carta o MEC sofre de alguma doença. Desejo-lhe sinceramente que a consiga vencer. Hoje a medicina já faz milagres. Tenha fé MEC. Deus é grande!

De Anónimo a 19.06.2012 às 14:40

nao e ele que esta doente mas a mulher

De Manuel Sanches a 19.06.2012 às 11:48

Apesar de não ler muito, pois os livros muitas vezes são tão pesados que conseguem fazer-nos adormecer. Além disso o tempo é pouco apesar de ser muito. há tantos mails para responder, tantas coisas para visitar, que fica muito pouco para ler, só quando estamos com sono conseguimos arranjar tempo.
Mas eu gosto de ler o que o Miguel EC escreve porque é de uma maneira divertida que diz coisas sérias e diz coisas sérias de uma maneira divertida.
Vê-se que adora a vida e assim consegue passar a mensagem sem que dê sono.

De Anónimo a 19.06.2012 às 12:43

"O amor é fodido" sempre que nos agarramos ao amor. O substantivo (amor) e o verbo (amar)não são situações iguais, ainda que pareça. Por vezes o problema reside na qualidade desse amor. Sim, por um lado, o "amor é fodido", mas não é fodido amar, quando se ama sem condições. Há diversos tipos de amor: Eros, Filia e Ágape. É este último a razão deste comentário. Logo, é um acto da vontade e não do sentimento.
Foi uma breve dissertação, que não visa comentar a carta, o autor e o destinatário.

De Maria vaicasoutras a 19.06.2012 às 12:47

Obrigada por partilhar connosco este carta.Tambem eu, que nunca conheci pessoalmente o Miguel Esteves Cardoso, estou com ele na sua dor. Também eu, me zango algmas vezes com Deus..Tanto a carta que ele escreveu, como a sua, me fazem sentir bem, não pelo que as motivou, claro,mas por não terem medo de expor os vosso sentimentos, mais profundos, coisa rara hoje em dia. Vivemos na era do light e descartavel, ate os sentimentos.. O Amor é fodido, meus caros amigos. Um abraço para os dois, bem apertado

De Acrescento de Milagre a 19.06.2012 às 13:10

Tomei a liberdade de partilhar na pagina da corrente pela cura da Maria João do MEC.

De mimi.prosperi@hotmail.com a 19.06.2012 às 15:37

Miguel, aprimeira vez que o vi foi no Linhó em casa da tia Elizabeth, eu mais velha, muito parva, você mais pequeno com o seu irmão e com o boné terrível do colégio. Desde essa época só através da sua escrita e ecos que chegam de pessoas que lhe são mais próximas. A sua mãe marcou a minha adolescência era linda, dançava como ninguém. Como sei desenhar, nunca mais me esqueci do lançamento das pernas dela, rodopiando nos braços do seu pai ao som do Sinatra. Coisas boas de um passado fantástico, vivido com muita ingenuidade. Fico feliz, por saber do desfecho do capítulo destes anos menos bons. Um abraço

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