Máquina da Preguiça®
O texto é uma máquina preguiçosa [Umberto Eco]
III A idade não conta só para os aniversários
A idade é mimada. Não se deixa contrariar. Nunca conseguimos estar de acordo com ela. Aquém ou além de si. Mas não é um pró-forma. Faz parte do nosso dia-a-dia: «sinto-me bem com a minha idade», «ando farto da minha idade», «não pareces ter a idade que tens», «estás óptima para a tua idade», «isso não tem que ver com a idade», dizemos.
Obriga-nos a esforçarmo-nos por ela. É de difícil convívio. Exige habituação. Resignação. Paciência. Cedência no número de prateleiras e no lado da cama.
Também não é voluntária. Se fosse por nós, não tinha amigos. Ninguém a queria. Passávamos ao lado. Contornando-a. Pelo menos a maioria. E o remanescente mais por exigências do politicamente correcto.
Por questões de respeito democrático devia de existir a fila para a meia-idade. Para a adolescência. Infância, etc. Com a derradeira hipótese de cortar a direito.
A idade é uma gruta de Ali Babá onde se escondem as memórias dos tempos do ié-ié, da queda do muro ou adesão à CEE. Riscar o que não interessa.
Está mesmo ali ao lado. O sítio onde amontoamos o nosso passado e em relação a este, relembrando L.P. Hartley em The Go Beteween: The past is a foreign country: they do things differently there.
O que faz com que a idade também nos dê alegrias, se nos esforçarmos:
M. a aprender a Estrelinha no violino. Todos nós concentrados. Sem nos importarmos. Dedos em procura lenta. Arco passando de mão em mão. C. perguntando entre trejeitos: «Esta cara tem graça?». Rindo. Como nós. E a nossa história de amor. Onde tudo começou. Um Era uma vez pessoal.
Lamechas? Uma pieguice pegada? Provavelmente. Mas só se pede desculpa pelas coisas que lamentamos.
Na maioria dos dias não se vê bem para que é que precisamos da idade. Não traz vantagens evidentes.
E se traz não compensa as responsabilidades. Só nos faz mais velhos.
A minha não é diferente. Bem podia ser para os outros. Até porque há gente para tudo. Deve haver por aí quem goste dela, mas…
Hoje, no entanto, acabei de nascer. Há serpentinas e balões pelo ar comemorando o meu nascimento antigo. Tchim-tchim. Hoje ela não conta. Nos outros dias a idade é por nossa conta e risco. Anátema habitual. Mas não hoje. Isso não se aplica ao dia em que fazemos anos. Tchim-tchim.
Alturas houve em que a idade nos faltava. Para assistir à sessão nos cinemas Alfa. Depois acabou a sobrar. De nós. Quando achávamos que já estávamos servidos, ela continuou: até hoje. Dia de aniversário. Num regabofe despropositado. Como uma visita indesejada que impõe a sua presença e que não sabe quando abandonar a festa.
Nos outros dias tentamos viver com ela. Dizemos vintes, trintas, trintinhas, em vez do que, realmente, é. Mas ela tem coisas de que não lembra a ninguém. É uma chata. Vem connosco à pendura. Ou pior: um passageiro clandestino.
É um tropeço. Inadmissível.
Às vezes assume-se como inconsciência, peso, desperdício, infantilidade, segredo. Pode ser variadíssimas coisas. Embora tenha aspecto de que só dá prejuízo. Podemos tentar, mas ela não se deixa enganar. Mais valia deixar-nos. Cada um indo à sua vida.
Mas ela não nos larga o pé. Um incómodo. Acarreta mal-estares, irritação, doenças e eczemas. E outras coisas próprias… da idade!
Por justiça, se pensarmos bem, tem mais a ver com o que se faz com ela. Afinal, a idade também dá muitas alegrias. Sei que já o disse! Mas nunca é demais repeti-lo. Para os néscios. Ou os mal-agradecidos.
Dito isto vou fazer alguma coisa com ela. Já oiço uns dedos tímidos num violino, hesitando no Lá, a precisar de ajuda. E vejo uma cara engraçada.
Tchim-tchim. Um brinde à minha idade. Hoje é um bom dia para pensar nela. Não vivemos de costas voltadas eu e ela. Somos bons vizinhos. Tenho muito boas razões para estar satisfeito.
Parabéns a nós!