Máquina da Preguiça®
O texto é uma máquina preguiçosa [Umberto Eco]
III O verão precisa de espaço
Vejo-os aproximarem-se. Batendo asa para um sul que me inclui. Acercando-se de mim. Correndo esbaforidos como se temessem não ficar incluídos na distribuição dos ultravioletas por pura velhacaria. Não confiando na suficiência das dunas. A distância encurtando. Os chinelos encartuchados nos bolsos dos calções enramados. O saco da promoção Piz Buin abarrotando, competindo com outros dois de uma churrascaria, enfeirando brinquedos e mantimentos para a tropa.
Olho à minha volta. A praia tem pouca gente. Uma língua deserta do tamanho de Madagáscar. A crise... Estou tranquilo.
Vejo-os aproximarem-se, encarniçados, em passada frenética, um ai sim, um ai não. Baralhado pelas t-shirts coloridas, anunciando hipermercados em promoção.
Olho, novamente, ao meu redor. Confirmo que a praia é um interior desabitado. A crise, claro! Permaneço tranquilo. A salvo na minha língua deserta.
Continuam a aproximar-se, reparo temeroso. Um ai sim, um ai não como se o areal tivesse propriedades vitrocerâmicas e atingisse temperaturas capazes de liquefazer aço. Nada os detém. Questiono a fartura da minha língua desértica.
Aproximam-se. O cinéfilo que há em mim pensa em Jaws: dam-dam, dam-dam, dam-dam. Barbatana assomando por entre as duas pernas de frango estampadas no saco da churrascaria, asfixiando na cova do braço do latagão que traz a bola de futebol.
Sinto os dentes trincando. Dam-dam, dam-dam, dam-dam. Intranquilo. Nem a crise. Os ais cada vez mais próximos. A língua deserta do tamanho de Madagáscar desidratada.
Disfarço.
"Já está a escaldar", oiço ao meu lado, como se repartíssemos o Etna.
Já somos vizinhos.
Disfarço, ainda mais.
Não quero olhar, mas imagino as plantas dos pés derretidas.
"Bom dia!", cumprimenta o patriarca sacudindo para cima de mim a lava dos tornozelos.
São “simpáticos”, reconheço.
"Bom dia!", respondo.
Sou rapidamente ensanduichado.
O chapéu-de-sol com a marca de um refrigerante acrescenta sombra ao meu.
Uma média assustadora de uma toalha por cada dez segundos vai crescendo geocentricamente, acrescentando-se à área coberta do abarracamento: armações e avançados.
Tento relaxar entre as ameias. Dormir seria uma boa ideia. Descontraio.
Mobilizo o sono:
Um veraneante assassinado, dois veraneantes assassinados, três...
Nada feito.
Os sacos açabarcaram o meu colo.
O benjamim dos meus vizinhos tem fome e, sentindo-se provocado por ela, atirou-se às sandes, anunciando estar disponível para retraçar três, mais um Compal de pera fresquinho e lançando um repto mortal a dois iogurtes antes de se atingir o almoço.
Abro os olhos com a ajuda da bola de futebol do Piranha que se estreou três palmos abaixo do meu tórax. Estou cabeça com cabeça com a centenária do grupo, imóvel como os Jerónimos.
Faleci e estou bem no centro de um acampamento tuaregue em plenário com, pelo menos, quatro gerações. Na falta de tisana para partilhar, resta-me a bandeira verde.
Devolvo uma embalagem que encontrei debaixo da minha carteira, onde só tenho tempo de ler: um antes do almoço e outro antes do jantar.
“É da minha namorada”, diz, sem agradecer, o mais rufia, olhando, em atitude de estampa, I'm too sexy for my love, para a jovem fixa ao telemóvel fluorescente.
"A água está boa?", pergunta-me a matriarca.
"Ainda não fui", respondo sereno.
"Olhe que parece", afiança.
Alguém que me ajude?!
Dr. Phill?!
A Marinha?!
O Exército de Salvação?!
Prometo que a partir de agora só campo ou termas.
Os ais só há pouco terminaram.
"A água está boa?", questiona o patriarca.
"Ainda não fui", respondo, novamente.
"Olhe que parece", contra-argumenta como se repisasse uma senha.
Desisto. Aceno e desejo bom dia.
“Já?”, sonda um dos sobrinhos do casal.
“A água hoje está fria!”, exclamo pouco imaginativo.
O rapaz, acabado de chegar do oceano, pingando-me o António Lobo Antunes que não fui a tempo de guardar, discorda incrédulo.
Dez minutos depois estamos no carro.
O António Lobo Antunes vai, no banco de trás, aberto na página 55, a dessalinizar.
É uma evidência. Em relação ao verão, preciso de espaço.
Autoria e outros dados (tags, etc)
2 comentários
De LWillow a 08.08.2012 às 00:26
De Eliza a 08.08.2012 às 16:59
fiquei a perguntar-me: de que A.L.A. se tratava?
'Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra no Mar?' seria adequado, haha.
leio-o sempre,
Eliza