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III Praguejar: sobre o grau de pureza de cada um

Sexta-feira, 31.08.12

Perante uma posição de perigo, a presa agiliza o trote e precipita-se na sua mais impetuosa corrida. Alguns animais camuflam-se ludibriando o predador com a paisagem circundante. Outros desafiam as probabilidades e apostam no ripostar. Certos lançam odores dissuasores. Se o animal rosna, barafusta, larga baba, em situação de desagradável confronto o homem perde-se em palavrões. O que nos distingue dos animais face à adversidade é a nossa capacidade de praguejar em barda.

   Nem sempre somos civilizados, delicados e bem comportados apreciadores de Bach e Moët & Chandon. Um palavrão é visceralmente indispensável para a nossa caracterização e diz muito sobre nós enquanto espécie.  

  Ante a demora da senha nº56 para a porta B, ante o apuro ou irritação, o nosso instinto não é de fuga, luta ou de estratégia de sobrevivência, é praguejador.  

  Se o palavrão possibilitar avaliar o grau de virilidade, a maioria dos elementos que se deparar com uma fila de trânsito será, maioritariamente, considerado homem de aço e em relação ao seu grau de pureza estará longe de ser apreciado como uma  lady virginal.

   O palavrão atravessa o nosso próprio crescimento individual. O nosso estado de desenvolvimento pode ser, facilmente, atestado em certos escalões etários pela cifra de palavrões conhecidos, cujo mínimo não poderá (por questões de garbo) ser inferior ao da miúda no ano a seguir a quem cresceu peito nas férias grandes e que sabe suficientes para contrapor aos elogios que lhe são dirigidos ao crescimento repentino.

   Também em condições de aprendizagem o palavrão é fundamental. Para ninguém ficar embaraçado fica a pergunta retórica:

Gramáticas à parte o que se decora, imediatamente, quando iniciamos o estudo de uma nova língua?

   Praguejar não é bem um defeito, é uma necessidade, um alívio... é como as gorduras cujo bem que sabem não compensa o mal que fazem, mas... as vantagens são inúmeras: praguejar tem propriedades anedóticas e, portanto, mais piada do que a erudição; parece ter capacidades apaziguadoras mas, também, de incitamento, admoestação, intimidação...

   Em termos de comunicação, praguejar é um comportamento de superior riqueza e potencial. Uma instituição. Um palavrão não se diz, entoa-se, como um cântico ancestral. Não é uma questão de vocabulário rudimentar. Se pensarmos bem, quantos sinónimos conhecemos para fezes? E pénis? Dezenas? Centenas?

   Obviamente que existem cenários e situações mais propícias que outras para a utilização de um palavrão: o árbitro que parece que não vê, o condutor que dá a sensação de ter comprado um carro sem piscas...

Também em termos de inferno de ordinarice podemos ir de um círculo exterior mais rudimentar ao nível de um "Raios te partam!" até ao círculo mais interior e central desta circunferência brejeira e de fazer corar o marinheiro mais bêbedo.

    É verdade que à força do palavrão as coisas não andam mais depressa nem correm melhor, mas praguejar liberta. Faz bem. Tem pundonor. É o fim da linha. Uma descarga de bílis contra as gasolineiras, as petrolíferas, o fisco, o governo, o serviço nacional de saúde, o vizinho... coloca-se a cara de Scarface e zás!

    Com o mais popular dos palavrões não se esgrimem argumentos, parte-se, automaticamente, para a boçalidade, mas isso não é nem uma preocupação nem um embaraço. 

   Em retrospectiva, um palavrão é um exagero. Injustificável.

Tudo o que vai além de um "Chiça!" é indecoroso, indesculpável, ofensivo.

    O palavrão é rasca. É reles. Sem classe. É descer à lama. Tira estatuto.

Alguém conhece penitência? Haverá adequada?

    O palavrão manda-nos para caminhos remotos e sinuosos. Expulsa-nos das boas maneiras e do bom gosto. Carece de bom senso e senso comum. Quem ouve olha com feições de "Deves estar muito orgulhoso!".

Um palavrão acusa, elimina, é prático. Em caso de dor, por exemplo, não dizemos:

 

"Estou com uma sensação incómoda, excruciante, associada a um processo destrutivo dos tecidos expressa através de uma reação orgânica" ou  "Estou aqui com uma resposta lancinante, resultante da integração central de impulsos dos nervos periféricos, activados por estímulos locais" ou, ainda, "Esta dor ciática que se iniciou na região lombar e que percorre todo o meu membro inferior é muito desagradável".

 

Largamos, prontamente, um "raios e coriscos" com bolinha vermelha no canto superior direito da moralidade e há um alívio de placebo que, embora ilusório, resulta. Retempera-nos.

     

Sobre praguejar que mais dizer?

Em relação aos palavrões, pode ser-se mais ou menos ousado. Se para alguns puristas um "carago" é uma bomba atómica, para outros não passa de um fulminante cacofónico.

   E depois há a parte cultural. Se o norte é uma nação, os palavrões preenchem pelo menos duas estrofes do hino. E ainda bem.  Tira-se a brejeirice ao S. João e só lhe resta a martelada.

   Orgulho?

Não.

Mas o que é que podemos fazer?

Nem todos podem ter temperamento de jovem gazela fugindo lesta ao leão.

A culpa não é nossa. Não se pode travar a evolução.

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publicado por Carlos M. J. Alves às 10:00





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