Máquina da Preguiça®
O texto é uma máquina preguiçosa [Umberto Eco]
III Água na Boca
Humm, o que eu não dava para estar agora em Marraquexe. E o bem que me sabia um Bloody Mary, para não falar de que só de pensar num bife Wellington me crescem calores.
A vida tem muito de apetecer. É desejo (incontrolável, às vezes). Querer. É cobiçar, ter ganas. Deixa-nos com água na boca para o apetitoso que coabita connosco. Seja lá isso o que for. Tolda-nos o raciocínio e deixa-nos de mãos atadas, presos ao que nem sempre devíamos. Põe tudo em estado de sítio e depois sai de fininho. Sabemos que não podemos (ou não devemos), mas...
A água na boca serve para olear os parafusos que impedem um estômago vazio de amalucar. É como um varapau no ar, açoitando o fastio. Vem pegada ao abrir o apetite ou mostra-lhe o caminho e põe-no em liberdade entregando-nos a si. Sem ela nem o conheceríamos. E não pára até se instalar a fraqueza.
É um entretém. Primeiro põe-nos a esfregar a sola dos sapatos frente à porta principal e a fazer tempo, mas como não faz cerimónias, assim que consegue dirige-se à sala e senta-se à mesa, a postos, conquanto é uma espécie de casamenteira que nos prepara para as entradas e para o que se segue.
E só ao vislumbre de digestivos dá o seu trabalho por terminado.
A água na boca cresce sem se dar conta. É, obviamente, de vontades. É um "Deve estar óptimo!" ou "Que bem que deve saber!". Parte do pressuposto de que, provavelmente, vale a pena e que é, certamente, bom. Tem a ver com o parecer: parece que o gelado é óptimo, que a carne é tenríssima, que sabe ainda melhor do que aparenta.
Vai ao cheiro. Afiança. É um "Acho que devias!" ou, sob a forma de desafio, "Assim, nunca vais saber!". Pode até enganar-se, mas convence. E faz gato-sapato até o alcançar.
Como é impulsiva, intempestiva e acelerada é coisa de e para espírito jovem, mas não só.
Marimba-se para o resto, obrigando-nos a enfrentar o precipício com que nos deparamos. Não é de modas nem tem horários, mas tem tudo a ver com a barriga a dar horas. E é não ver o dia em que se sucede, ansiosa, e dar com os pés ao resto.
Vira-nos do avesso. É um ferver de sangue que mata, implacavelmente, o mensageiro se não gostar do que ele traz.
É estar à rasquinha. Quase a rebentar. A não aguentar mais.
Uma vontadinha. Incontrolável. Impaciente.
Em rigor é diferente da inveja que é traiçoeira, maldosa e mal-intencionada.
Sintomas?
Os pêlos atrás do pescoço são os primeiros a dar sinal, eriçando-se. Depois certo tipo de fornicoques e o inevitável ficar sem forças para resistir.
Responsáveis?
A água na boca está entregue a mãos experimentadas: livreiros maquiavélicos, publicitários conhecedores das fraquezas humanas, a várias gerações de avós capazes de resistir há mais horrífica das torturas para salvaguardar os segredos que condimentam as travessas, chefs talentosos, vendedores...
Exemplos?
Uma citação de Thomas Mann que nos deixa com vontade de ler de um fôlego A Montanha Mágica e Morte em Veneza, a lembrança dos cozinhados da avó, o sabor daquele mojito naquele bar a que não vamos há uma eternidade e que nos ficou, um trailer publicitário que nos desassossegou ao ponto de fazer reaparecer na nossa vida, durante todo um fim-de-semana, o que estava adormecido desde a infância: a saga da família Cartwright em Bonanza.
Os especialistas bem que avisam que não se deve ir às compras de estômago vazio, mas o que me assusta é a água na boca. Passar nas proximidades de uma feira de enchidos é ficar a aguar para as alheiras de Mirandela e para o presunto de Chaves. Rondar a secção dos queijos é ficar assoberbado pelo amarelinho da epiderme dos lacticínios da ilha de S. Jorge ou obcecado pelo rótulo onde se lê Estrela que parece piscar o olho só para pôr o incauto a arfar e de água na boca, para lá da salvação. Perdido. Em apuros.
Bem podemos repetir "Häagen-Dazs nunca mais, Häagen-Dazs nunca mais, Häagen-Dazs nunca mais", mas se nos distrairmos e nos começa a crescer água na boca, o caldo está, irremediavelmente, entornado.
A água na boca não pode ser compensada. Faz estragos e pronto. E não é só com a comida.
Também funciona diante de uns sapatos Luís Onofre que antecipamos calçar que nem uma luva.
Livros. Alguém falou em livros?
Se houver um bibliófilo que me convença de que não há sempre um livro a fazer falta, exijo que partilhe o segredo de como o consegue.
Fnac, Bertrand, Bulhosa... as prateleiras das livrarias têm propriedades de refogado aromático em preparação no que ao despertar água na boca do leitor concerne.
E os gadgets?
Repletos de funcionalidades high-tech, apelando convincentes ao consumismo.
Mais os automóveis?
Espaçosos, confortáveis, poderosos, na cor preferida, repletos de estatuto.
Também empregos bem pagos são uma possibilidade excelente para nos fazer crescer água na boca. Ele são os rendimentos elevados, as regalias, prémios, comissões, estacionamento...
É preciso estar atento. A água na boca é o início da tentação.
Um entusiasmo.
É um fazer-se ao piso.
Um tambor atacando o rufo, preparado para o grande evento.
O antes de tomar-lhe o gosto.
É um nhami!.
Solução?
Fugir é o melhor remédio. Mas tem, obrigatoriamente, de se ser rápido.
O meu truque pessoal?
Entregar a carteira a terceiros. Imediatamente. E fazê-los jurar que esta nunca será devolvida, mesmo sob ameaça de subir ao ponto mais elevado do El Corte Inglés e atirar-se. Falando, meramente, no campo das possibilidades, coser a boca seria outra hipótese. Mais extrema, admito.
E agora alguém que me tire aquela sobremesa do meu ângulo de visão. Não sei se o sou capaz de fazer ordeiramente. Há regras simples que não devemos desrespeitar. Conhecer os nossos limites é uma delas. Tenho medo de tentar furar o esquema. Preciso de ajuda. Alguém que me demova, que me acuda, rapidamente. O melhor é pôr-me ao fresco.
Claro que, em relação à água na boca, tudo acaba quando passa a vontade. Mas isso pode demorar algum tempo e às vezes é tarde demais.