Máquina da Preguiça®
O texto é uma máquina preguiçosa [Umberto Eco]
III Vontade de viver
Desconheço se é por adubamentos em falta, por não ter tempo para falar com plantas, se por pujança do calcário na água ou sobejo de cloro, mas a verdade é que lá em casa não frutificam árvores das patacas. O único supervivente vegetativo que sobrevém fotossinteticamente à minha inépcia será um cacto fortuito mais caprichoso.
A minha fonte de rendimento é, unicamente, o trabalho o que oblitera, visivelmente, os meus rendimentos.
A juntar à labuta contraproducente e à desflorestação da varanda, soma-se a minha incapacidade para a poupança que só é comparável à facilidade com que deixo escapar fundos por entre os dedos.
Às vezes tenho a nítida sensação de que o dinheiro foi uma invenção para que continuo impreparado. Sou incapaz de lhe dar a volta pois, nitidamente, não resulta comigo. Não fui incluído no projecto nem constei do esboço. Estou aquém do desígnio. Faço parte das excepções, das contra-indicações. Ou, pelo menos, até hoje não compreendi o conceito.
Há anos que percebi que nunca conseguiremos manter uma relação séria. Sempre de costas voltadas, incapazes de partilhar o mesmo espaço, dividir o mesmo leito e ter contabilidade comum.
O litígio deu origem a divórcio, sem possibilidade de reconciliação.
Podia procurar frases batidas que jogassem a meu favor mas, a verdade é que o meu problema em relação a poupar dinheiro é que embora perceba a necessidade, não vejo como. Há um corte epistemológico entre o “porquê” e o “como”.
Tenho esperança de que um dia acorde enfartado e a não precisar de comer, a odiar beber, a não ver necessidade em andar vestido e ler, pronto para dar filhos para adopção e de proventos salvaguardados.
Um dia em que não sonho com carros com porção de cavalos suficientes para abrir uma coudelaria ou anseios gourmet.
Percebo que sozinho não vou conseguir, pelo que a opção é acabarem-me com as vontades ou tudo quanto corteje intenção e objectivos próprios.
Operem-me. Arranquem-me o hipotálamo à bruta. Violentem-me o tálamo. Despedacem-me o hipocampo. Limitem-me as circunvoluções cerebrais. Fiquem-me com um hemisfério com opção para dois lobos. E vendam-me tudo quanto seja neurónio.
Aproveitem para arrebatar o resto. Vive-se bem sem pulmões e rins. Fígado, logo veremos! Levem-me pernas e pés para não ter de desembolsar dinheiro com calçado.
Estou determinado. A gente arranja-se com pouco se se puser a isso. E sem vontade de comer, beber, de me vestir, de cultura descurada, sem filhos e casa, as dificuldade económicos ficariam resolvidas. Acabar-se-iam as minhas lamurias acerca de impostos. Nunca mais ninguém me ouviria falar em escalões de IRS. Terminariam as preocupações com o IMI. Estaria de acordo em relação a mais austeridade. As agências de rating seriam minhas amigas. E o governo independentemente de qual teria, sempre, o meu apoio não obstante as medidas. Seria, sem dúvida, uma pessoa melhor. Preferível, pelo menos. Andaria mais leve, sem necessidade de usar carteira e porta-moedas.
Salvem-me! Acabem-me de vez com os egoísmos das vontades. Apetecer é desnecessário. Querer é pouco vantajoso. Desejar, ambicionar, aspirar, pretender é inútil. Mais do que isso é escusado e supérfluo.
Quem vegeta não desembolsa porque não come, não bebe, não lê e não precisa de filhos.
Jejum, desidratação, perda de hábitos de leitura são a minha estrada para Damasco. O meu roteiro para o aforro. Serei o sem-abrigo, maltrapilho, sem amigos e filhos com quem gastar dinheiro, amealhando e de punhos cerrados e dentes à mostra contra a vontade amputada. Progressos contabilizados em côdeas, lêndeas, meias sardinhas, arrobas por consumir e volumes por ler.
Não será fácil. Prevejo amuos, arrufos e agastamentos. Urgências de mudança e renúncia a hábitos antigos. Mas, estou preparado para a briga e já vejo a conta bancária a aumentar. Dilatando de economias. Novos cartões de crédito exclusivos à vista. Já estou com o livro de cheques preparado.
A vontade é forjada, maquinada, fabricada, criada, engendrada só para nos arruinar economicamente. É atrevida, afoita, insolente, desaforada, rabiando constantemente com o bom-senso. Pesa-nos no bolso. E faz-nos errar escolhas.
Quanto mais cedo o percebermos melhor.
Ponham-na de castigo. Puxem-lhe as orelhas. Cortem-na aos bocadinhos.
Pensando bem, o melhor será tirá-la toda. Arranquem-ma. Incinerem-na. Façam-na desaparecer.
Certifiquem-se antes de lhe voltarem as costas de que foi, completamente, extirpada!
Mas, já agora, deixem-me um restinho. O que é necessário para querer viver.