Máquina da Preguiça®
O texto é uma máquina preguiçosa [Umberto Eco]
III Sobre a possibilidade de se voltar aos sítios onde se foi feliz
Voltar ao sítio onde se foi feliz é voltar a nós mesmos. A uma parte que já não nos pertence, mas que não ficou esquecida. A uma convivência interrompida.
O sítio onde se foi feliz vive de momentos e lembranças. É um mundo inteiro, o nosso sonho preferido, uma praia deserta, um eterno pôr-do-sol, um banco de jardim, um país, uma mesa de restaurante com poucos clientes, um teatro com peças de Strindberg, uma sala de cinema semi-deserta, um bar com decoração fin de siécle, um velho alfarrabista sem novidades. É uma música fora de moda que se tornou um hino. Fica num poema muito repetido, em pequenos gestos, naquela fotografia gasta, em prendas de aniversário antigas e lembra-se em datas especiais. Cabe, perfeitamente, numa rua. E chegam-lhe algumas palavras e umas quantas recordações.
No sítio onde se foi feliz os números de telefone não mudam e os prédios nunca perdem a cor. Está cheio de heróis e caras conhecidas. É sobredimensionado, colorido, desensombrado, alegre. Nele nunca se sente fome, sede ou cansaço. Não se dorme, nem se dá pelo calor ou frio.
Mas, o sítio onde se foi feliz mudou de lugar. Não está onde o deixámos. Onde tínhamos a certeza de que o voltaríamos a encontrar. Fugiu-nos debaixo dos pés. Já não é nosso.
Está diferente: inabitado, irreconhecível. Uma sombra do que foi. Não é como o pensámos. E não está em lado nenhum. Aquém e além de nós, ou essa é pelo menos a sensação que dá, mas é só porque não é o que parece.
Desilude-nos, também, por isso.
É mais uma ideia do que uma realidade ou uma vontade mais do que uma certeza.
O sítio onde fomos felizes desaparece quando estamos frente-a-frente com ele. Foge de nós.
Talvez porque só se seja feliz num sítio uma única vez.
O sítio onde se foi feliz não espera por nós. Continua sem darmos conta. Obriga-nos a olhar noutra direcção diferente.
O sítio onde se foi feliz só serve para quem lá ficou. Estranha a nossa presença.
Quer ter um ar moderno. Tem novos interesses, novos inquilinos, namorados apaixonados, enamorados à primeira vista, amantes ardentes. Frequenta novas paragens, vive de outras companhias, aprendeu novas rotinas e tem truques recentes. Refez a sua vida.
Não nos pede para voltarmos mas, também, não nos fecha a porta na cara.
Aparentemente não sentiu a nossa falta.
O sítio onde se foi feliz teve o seu tempo. Só não é intemporal porque não tem idade.
Só nos fala e toca a nós e só nós é que o percebemos.
Ficou para trás. Já passou. Foi bom enquanto durou.
Serviu para estar onde estamos agora e já não faz ciúme àquele em que nos encontramos.
O melhor que temos a fazer é seguir em frente.
Porque o sítio onde se foi feliz já não existe.