Máquina da Preguiça®
O texto é uma máquina preguiçosa [Umberto Eco]
III A sorte quando nasce não é para todos
O bom senso é a coisa do mundo mais bem distribuída: todos pensamos tê-lo em tal medida que até os mais difíceis de contentar nas outras coisas não costumam desejar mais bom senso do que aquele que têm.
Descartes
Tenho, claramente, problemas com o Espírito Santo. É, igualmente, evidente que não consigo enfrentar milagres.
Em bom rigor, não estou para acasos. Maus-olhados e superstições nem por sombras. A sorte é uma farsa e adventos de última hora ou surpresas que me estavam reservadas, nem pensar.
Não tenho personalidade adequada para pseudo-ciências nem físico resistente às agruras da crendice.
Não vivo para coincidências nem me revejo em azares. Quanto a elixires e mezinhas, não obrigado.
Também não bato três vezes na madeira e recuso-me a ter de entrar com o pé direito em qualquer lado.
Caneta da sorte não tenho. Ferradura atrás da porta nunca usei.
Como é fácil de entender zombo de propósitos místicos, céus em risco de cair sobre cabeças incautas, horóscopos prevaricadores do livre-arbítrio e não me impressionam as conjunturas astrais.
Não acredito em escadas ou escadotes que nos encolhem se lhes passarmos por baixo nem em anjos da guarda cândidos ávidos por boas acções, zelando inocentes, 24 horas sobre 24 horas, por nós.
Na minha opinião, a matemática não se compadece com números da sorte e não há nada de especial em trevos de quatro folhas mesmo que a falta de abundância o faça supor.
A única coisa que há de expectável numa sexta-feira 13 é um sábado 14 e se eu tivesse notas de 50 euros por cada vez que já me anunciaram o Apocalipse estaria multimilionário.
Sou racional. Sinapses em brasa. A razão é a única coisa que me dá garantias. Causas e efeitos são a minha perdição. O tino é o único sustento seguro do espírito. A levando, inevitavelmente, a B. 2+2 teimando em ser 4.
Dou mais para a lei e para a regra do que para o sobrenatural. Para a clareza e distinção do que para o obscurantismo.
A fé não tem hipóteses ante um raciocínio. A crendice atrapalha-me a dedução.
O futuro conquista-se neurónio a neurónio e paga-se em lógica usada.
Sofro de iliteracia no que diz respeito a ler sinais. Os avisos passam-me ao lado e se já me cruzei com a chave do Totoloto, não dei conta.
Não tenho olho para algarismos da sorte e não frequento terreiros de adivinhação nem o Bingo.
Não cedo o pescoço a amuletos, não vou em conversas de pitonisa, não me encolho a vaticínios, não acredito em zodíacos, não acendo velas, não alinho em sorteios nem perco tempo com prognósticos.
Ah, e como já insinuei não tenho interesse na sorte, porque não traz vantagens evidentes.
Digo mais, é um rafeiro que não conhece o dono. E fica aquém das minhas necessidades, vivendo de desencontros e mal entendidos.
Só gera confusões!
Não me ajuda e só me prejudica no verde dos semáforos ou no mudar o filtro da máquina do café que me calha sempre a mim, por minudências de mau timing. Para si não sou uma prioridade. Não vai por mim. Entregar-me a si é resignar-me a uma longa lista de espera. Só serve para me fazer perder tempo.
Já percebi que só aparece para alguns e para as coisas boas. O jackpot do Totoloto, por exemplo. Onde é que ela está quando a pulseira da criança que tinha o fecho estragado cai na sanita? A sorte é, de certeza, mediática, não se empenha nas frugalidades do dia-a-dia.
Raspadinha a raspadinha, jogo branco a jogo branco vou desfazendo as dúvidas e conquistando fiéis.
Pelas mesmas razões (ou falta dela, a razão, claro está) recuso o destino. Por ser algo que pode claramente, prejudicar-me.
Avanço por conta de reflexões. Decido, ponderadamente. Cogito. Encontro razões. Penso. Sem perder a direcção.
O meu destino dá muito trabalho e só tem 22 dias de férias por ano.
Mas, às vezes, num dia particularmente difícil ou em alturas de maiores dificuldades, fico a matutar se a racionalidade não está sobrevalorizada. E aí o que eu não dava para que houvesse uma estrela que brilhasse só para mim.