Máquina da Preguiça®
O texto é uma máquina preguiçosa [Umberto Eco]
III O burro, a vaca e o vilão
Gosto tanto do Natal quanto o próximo. Sou entusiasta das bolas coloridas, das fitas e das lâmpadas em intermitência controlada de semáforo hiperactivo. Preparo-me para ele com pompa e circunstância erguendo, entusiasmado, uma espécie de sambódromo natalício na sala de jantar. Trocando a batucada da Mangueira por um eterno I Wish You a Merry Christmas. A Vista Alegre perdendo preponderância para o pinheiro resinado que serve de esqueleto para as ambições festivas familiares.
Não passo sem o Natal. Pelo menos uma vez por ano. Nem que seja o dos Hospitais ou em regime Jogos sem Fronteiras ou festival da Eurovisão.
De preferência como na canção de Irving Berlin em modelo White Christmas (no original e não numa das versões que, como todas, acha que vai acrescentar alguma coisa, sem nunca o conseguir). De ar adocicado, a saber a rabanadas e sonhos. Clássico. Nada de devaneios pós-modernos trasvestidos de contemporaneidade.
Sonho com Papai Noel anunciando-se triunfal, em vozeira estridente, imunizada pela mebocaína da época. Pronunciando em grito Weissmuler Tarzan das selvas do Pólo Norte:
"Oh!, Oh!, Oh!".
As barbas brancas sobrando dois palmos do ano anterior, longe da adolescência pretérita.
Distribuindo brinquedos ou doces aos bem-comportados do mundo e carvão que ficou do tempo da revolução industrial ao lado obscuro da força, em vésperas nataleiras e em preparos vermelhuscos Coca-Cola/YMCA.
Rodolfo berregando altiva. Sapatinho a jeito e à mercê da generosidade alheia. Enfim...
Estou alerta quanto aos perigos do consumismo próprio da quadra mas, nos últimos anos, tenho contribuído em bife tártaro e Ceviche para a proeminência da barriga de São Nicolau quanto o desejável. E não é por falta de bolota que vão faltar energias à rena Rodolfo de nariz encarnado. Por mim o desempenho de ambos não está comprometido e podem pôr-se à estrada bombando com resistência Duracell da Lapónia, via Vilar Formoso, até minha casa, seguindo por uma autêntica Yellow Brick Road com rasto de azevinho.
Outra tradição, também, importante e onde tenho, igualmente, ricos pergaminhos é a do presépio. Encetado sempre por musgo fresco capturado com auxílio Black & decker GR3420 in loco. Nada de modernices made in Ikea ou de aviário Aki.
Foi por isso, com surpresa, que após ser teologicamente informado das novidades percebi, para meu incómodo, que uma autêntica revolução estava em curso e um casting repentino se avizinhava, fazendo desaparecer actores até agora fundamentais no que ao presépio diz respeito.
Permaneci, durante dias, assoberbado pelo sumiço dado ao pequeno zoo rural do presépio, por Bento XVI. O obreiro convicto da substituição. Revoltado com anacronismos e inconformado com imprecisões históricas e geográficas. Fauna questionada e figurantes, ancestrais devolvidos à devida proveniência. Os exíguos hectares da herdade divina, salpicados a mirra, dos quais faziam parte a pequena quinta biológica sendo ameaçados. Gaspar, Melchior e Baltasar remanescendo no estábulo, salvando o que podiam do costume, comparecendo pelos próprios meios. E eu, achando que são, realmente, misteriosos os caminhos do Senhor.
Admito que a alteração abre espaço, por entre a manjedoura, para mais prendas mas, após grande reflexão, disponível para abdicar do burro, continuo a reivindicar a vaca.
Se não nos virmos, entretanto, Feliz Natal!