Máquina da Preguiça®
O texto é uma máquina preguiçosa [Umberto Eco]
III O Carnaval é para as mulheres
Uma vez por ano e durante três dias, macho que é macho passa de Alfa a, pelo menos, Beta. E, de preferência, a fêmea Gama. Confuso?
O Carnaval provoca desarranjos graves na testosterona. Desalinhos na sexualidade. Identidade esquizofrénica quanto à varonilidade. Ambivalência. Incontinências de feminilidade. Confunde o X e o Y. É uma espécie de cocktail virulento extraordinário à base de influenza e ébola efeminados. É matéria de exorcismo sexual.
Todos os anos a situação mantém-se. Durante o Carnaval homem que é homem quer fazer passar-se por mulher. Não uma dona de casa extremosa, competente nos refogados e rígida com a educação das crianças e os horários de amamentação, mas uma matrona gostosa, brejeira e oferecida a quem faltam o mínimo de boas maneiras. Com porte de estivador, escondendo debaixo da sensibilidade de entrudo a robustez de metalúrgico.
O folião perde a vocação viril e ganha cintura badalhoca.
A época atrai a mudança como a promessa de cargo durante a campanha eleitoral. É hospitaleira para com quem dá o salto e não entrega cartões-de-visita estereotipados às visitas.
É habitual encontrar um homem cuja transformação apressada faz perceber um paradigma mudado, engordado e degenerando em prima-dona. Pairando num limbo de gravidade zero com a pilosidade enxovalhada, passando de barba de Bin Laden a esfoliações compensatórias. Perde a língua viperina de Howard Stern e de resignado sofredor da síndrome de Tourette, torna-se falinhas mansas reformado do vernáculo.
Arranja-se, pinta-se, aprimora-se. Acrescenta unhas, tira sobrancelha, arrebita pestanas.
Sobem as saias, apimentam-se os ares e decotam-se as blusas. Esganiça-se e tiram-se graves. Perdem-se forças.
Como se foliar fosse mais coisa dela do que dele.
Homem que se mascara ganha cintura fina e meia de descanso. Incha acima do abdominal e abaixo do pescoço. Suspende os acessos de masculinidade. Mostra pele como quem a está a entregar ao sol das Seychelles. Movimenta-se como quem ganhou asas de frango. Oferece-se, sem vergonha, com melhores condições do que as promoções do Pingo Doce. Ganha vocação de freira. Perde o horror ao sangue e às injeções e surge-lhe consistência de enfermeira.
Assim se prova o título que bem poderia ser uma verdade a La Palice. O Carnaval é um shot gigantesco de estrogénio.
No meu caso, não vou em carnavais. Não assisto, abrigado do aguaceiro, ao balanço da baiana. Nem acompanho a batucada. Não gosto de me dar ares. De parecer. Andar em trajes de Ney Matogrosso.
Não faço corte a rei do corso. Não me aperalto. Não envergo uniforme nem visto a camisola. Estalar, rebentar ou enfarinhar para mim não são prioridades.
Não embalo em certezas de "É Carnaval, não há nada a parecer mal!". Não vou em disfarces. E, em relação, a máscaras sou dissidente.
Também não reclamo título de participante no Carnaval mais português ou genuíno. Não tenho pés para samba nem ritmo aproveitável para desfile. Não cedo olho ou acabo mancando para dar em pirata de perna de pau.
Não cedo. Nem que acabe em minoria.
Para alívio, no fim, há uma certeza: enterra-se o bacalhau.