Máquina da Preguiça®
O texto é uma máquina preguiçosa [Umberto Eco]
III A latosfera
Se alguém lhe disser na cara "É preciso ter lata!" como se você fosse uma mutação de Marylin Manson subvertendo Tainted Love, com orgulho, confirme.
Pode até acrescentar: "Sim, claro, sou português!".
Se eu não fosse português gostava de o ser só por causa da lata. O português tem lata.
Em doses Cheerios familiar.
Não se acanha. Não é acabrunhado. Arroja-se.
Bate à porta para pedir um pezinho de salsa, mas transforma-se, ainda na soleira, em Átila o Huno acabando a saquear a despensa e a assaltar o frigorífico da vizinha.
Garante qualidades duvidosas.
Vantagens inexistentes.
Confirma prazos por cumprir.
Validades ultrapassadas.
Compromete-se com o impossível.
Pisa o risco.
Enfim, tem lata.
Exemplos?
Ter lata é desvalorizar ao agente da autoridade índices elevados de alcoolémia no limiar da náusea e com evidências na fralda da camisa de vómito recente.
É ser capaz de desmentir aos pais da jovem uma gravidez, com o trabalho de parto em contagem decrescente.
Negar ao cliente irado o cabelo afundado no Risoto, como uma bandeira erguida com esforço no topo do Evereste.
Ocupar o lugar para deficientes no estacionamento desculpando-se com enxaquecas atrozes.
Negar um flagrante delito ou uma boca na botija.
Uma amante deitada lânguida no quarto do casal.
Dizer-se da oposição com o pin do partido do governo na lapela.
Afirmar-se inocente com a arma fumegando na mão ou, ainda, agarrado ao pescoço da vítima.
Há latas e latas, mas sem ela não se arranja namorada, não se ganha lugar na fila, não se consegue par para o baile de finalistas...Não se vai longe. É com ela que se conquistam lugares, se recuperam posições, se avança na direcção do El Dorado.
A lata desafia a vergonha é dissimulada e disfarça, por isso não agrada ao discreto nem serve ao tímido. É desaconselhada pelo bom senso, mas consegue resultados.
Na lata cabem várias ousadias e uma imensidão de "não custa nada tentar". Fica algures entre o "ver se pega" e o "pode ser que cole". Perto da fronteira do "Não há outra maneira".
Um mundo estratosférico subdimensionado para as necessidades, transversal a todas as classes, com densidade populacional excessiva e sem demografias privilegiadas.
A lata recomenda moderação como o Viagra, mas tal como o uso selvagem deste leva a corações a explodir também com ela se observam exageros.
Além disso, a lata pode, muito bem, cair em saco roto. Esse é um risco que se tem de correr. Mas como toda a gente sabe:
"Quem não chora não mama".