Máquina da Preguiça®
O texto é uma máquina preguiçosa [Umberto Eco]
III Se eu fosse a ti, fazia o que eu digo e não olhava para o que eu faço
Todos já nos cruzámos consigo. É comum e espontâneo. Aliás, de cada umbigo proeminente, de um altruísta egocêntrico ou de algum bem intencionado sabedor surge sempre um "Se eu fosse a ti". Ele aparece em circunstâncias de dúvidas, intromete-se em momentos de fraqueza, afoita-se a propósito de hesitações e acerta o passo pela atrapalhação.
Por vezes é um gesto bem educado como o de abrir a porta às senhoras. No entanto, um "Se eu fosse a ti" torce o nariz. Tem a mania.
É de quem não consegue ficar calado. De quem sabe ou acha que sabe da nossa vida e está convencido de que saímos a beneficiar com as suas opiniões. É um "Não devias ir por aí" e "Devias ser mais como eu".
Tem personalidade metediça e intrusa. É abelhudo, atrevido e até insuportável.
Um "Se eu fosse a ti" acha que nos entende e acompanha-nos para todo o lado. É por nós. Um farol. Tem um lado bom: não quer que passemos vergonhas. Repreende-nos para o evitar.
Nessas ocasiões não dá troco a críticas negativas. Compreende a nossa posição e tem pena e consideração. É benemérito e serve para nos amparar.
Um "Se eu fosse a ti" está sempre de olhos em nós e é todo ouvidos. Porquê? Porque acha que um dia pode estar na nossa situação e, por isso, é um "tu" que passa, temporariamente, a "eu".
Compara-se e preocupa-se connosco, dá-nos conselhos e põe-se no nosso lugar, reclamando experiência, pleno de maturidade. Esclarecido. Achando que sabe mais do que nós.
Um "Se eu fosse a ti" encoraja-nos, calça os nossos sapatos, abre-nos os olhos, dá-nos a mão e oferece um ombro se as coisas descambarem. Podemos confiar em si porque é uma voz rezingona, amiga, frontal que não se coíbe e não dá com a língua nos dentes.
Abre-nos caminho, faz as nossas vezes e tem vontade de ir à frente. Liberta-nos tensão para não nos saltar a tampa.
Tem ideias para nós e projectos. Identifica-nos as prioridades. É um "deixa-te disso", fraterno.
Um "Se eu fosse a ti" faz juízos de valor q. b., mas mais importante do que isso, dá hipóteses, pistas, apresenta opções, faz contas e ajuda-nos a considerar saídas.
Põe-nos a tomar decisões, a fazer dietas, a cumprir prazos, a treinar para a maratona, a optar entre a Maria e a Joana, a escolher entre e a praia e o campo... manda-nos ver a febre.
Às vezes passa das marcas e mete-se onde não é chamado. Chaga-nos, descompõe-nos e põe-nos as malas à porta. Repisa. É chato e desagradável. Troca-nos as voltas e dá-nos um discurso. Ou insinua "Faz como eu digo, mas não faças como eu faço!". Aí apetece-nos dizer: &%%&#*$#"!x. Mandá-lo dar uma curva. Perguntar-lhe por quem lhe encomendou o sermão.
Outras nem deve ser tido em consideração porque não sabe do que fala.
Se tivermos sorte um "Se eu fosse a ti", tem cuidado com as coisas que diz, insinua, desaconselha, faz reparos e ajuda-nos a enfrentar as contrariedades. Mas, por vezes, remete os nossos hábitos para o tempo das trevas, passeando-nos pelo lodo e por isso o melhor é não arriscar.
A verdade é que apesar das boas intenções nem sempre fazemos caso de um qualquer "Se eu fosse a ti". Esquivamo-nos. Ficamos com a Maria e a Joana. De manhã vamos à praia com uma e à tarde fazemos um piquenique no campo com a outra. Com 40 graus de febre.
Mas, nessas alturas e em especial quando as coisas correm mal, damos automaticamente de caras com um ainda pior:
"Eu bem te disse"