Máquina da Preguiça®
O texto é uma máquina preguiçosa [Umberto Eco]
III Domingos de Apocalipse
Ao Domingo, durante a tarde, não estou para ninguém. Durante a manhã entrego-me a uma actividade física restrita que me permite concluir que realmente a forma física já não mora aqui. Corro até à banca de jornais mais próxima e só dou o exercício por terminado quando a entrega do testemunho jornalístico me é feita em condições e a meta é uma evidência.
Ao almoço acamo, com saladas, o estômago para o ambiente de desgraça e/ou extinção da humanidade que se avizinha, mas à tarde, desligo telemóveis, fico off line, simulo febres e contágios de vírus mortais e escondo-me para combater insistências porta a porta.
Testo a minha invisibilidade e vou até à janela, enceno o meu desaparecimento e, por volta dos cafés, enterro-me no sofá até à iris que se transforma em periscópio, guardo lugar na sessão da tarde e fico solidário com um qualquer Apocalipse da televisão pública ou da concorrência que acabe pela hora de jantar.
Ao Domingo a humanidade precisa de mim. Estabeleço alianças, livro-me de envenenamentos e faço voluntariamente parte do exército de salvação do mundo. Armamento poderosíssimo à base de lasers, satélites espiões, misseis Stinger, mecanismos telecomandados, canetas dinamitáveis, submarinos disfarçados e helicópteros portáteis ao serviço de soldados universais bem preparados, lutando pela sobrevivência de democracias até ao último bastião do mundo livre, capazes de derrotar mercenários a soldo de ditaduras cruéis.
Até hoje passei honrosamente à reserva e fico a observar da poltrona os EUA salvando pela enésima vez o mundo, enquanto 007 numa qualquer operação tentáculo se aplica na única parte do globo a que os americanos não conseguem chegar a tempo.
Também não desdenho psicopatas terríficos, meteoritos a entrar mortíferos na atmosfera, desabamentos fulminantes, incêndios ardendo como um fogo eterno e inundações copiosas de última hora.
No inverno aqueço-me com cidreira e lúcia-lima e alguma tisana, eventualmente, mais exótica. Mas, ao fim da tarde, alinho num gin que tónico baixa mais agradavelmente e tem uma entrada facilitada em ambiente gástrico com a assistência da gravidade. Entre o ponto i de início e f de fim fica um espaço ocupado por banquetes diversificados de rissóis, pastéis de bacalhau e massa tenra e sandes várias.
Durante esse tempo em que ocupo o meu tempo livre dominical a fazer com que a espécie humana escape à justa de um fim iminente, alimento conspirações, faço anti-jogo e torço pelo inimigo público nº1. O meu envolvimento domingueiro deixa perceber que, também, simpatizo com explosões, maldições com 300.000 anos, invasões alienígenas, salvamentos arriscados, resgates, hecatombes e cataclismos naturais.
Ao Domingo empolgo-me, luto pela independência de nações, tomo partido, assusto-me e entusiasmado grito alto as contagens decrescentes próprias de um fim do mundo: 10, 9,8, 7, 6...
Bem, às 16.20 temos Roger Moore na RTP1. Não há tempo a perder. Durante, mais ou menos 120 minutos mais intervalos, também eu, estou ao serviço de sua Majestade, com licença para matar e apto para tirar de apuros donzelas indefesas.
Está quase na hora: 10, 9,8, 7, 6...
Quando me deitar posso dormir descansado porque o meu contributo para que o mundo como o conhecemos prosseguisse o seu rumo foi inestimável. E, sabendo isto, ponho as coisas em perspectiva, arranjo coragem e as almofadas, dou uma dentada num rissol de camarão e preparo-me para enfrentar o último reduto das forças beligerantes até poder entrar com Roger Moore num bar de hotel e beber consigo um dry Martini.
Há que aproveitar porque sei que a um Domingo de Apocalipse se segue sempre uma segunda-feira de inferno.