Máquina da Preguiça®
O texto é uma máquina preguiçosa [Umberto Eco]
III Homem ao mar
A praia estava em dia de "cabe sempre mais um", elitista como uma doença venérea e com bandeira em verde psicológico.
Apreciador modesto de enchentes e admirador irónico das massas, olhou as cercanias ofendido pela afluência de turistas estirados em segunda fila.
Aproveitou uma aberta súbita e levantou-se, olímpico, com modos de consumidor final, motivado o suficiente para enfrentar a concorrência.
Ajeitou a Pierre Cardin semi-genuína de verões passados, perto da vencedora do prémio o-primeiro-chapéu-de-sol-a-voar-na-praia, e do indígena com a opção, infelizmente tomada, de mandar tatuar o nome próprio em dois terços do tórax em ponto cruz gótico: Tiago.
Enfrentou as movimentações dos desistentes vítimas do vento fresco, pisando o satus quo que lhe aparecia pela frente: povo protegido com protector solar como linguado panado, nobreza fresca e uma poça de beatas ainda acesas na areia.
Corajoso avançou a bom ritmo ansioso por se acercar do alvo, como quem entra em território inimigo, até chegar ao objectivo nº1: uma nesga de Atlântico.
Primeira paragem forçada, um anjinho a estorvar a circulação até à orla marítima fazendo parte do grupo de crianças-obcecadas-por-gelados-que-choram-até-os-pais-cederem a gritar "fónix mãe, compra lá" e "bué da louco".
À sua frente uma feroz competidora, invejando a mesma aberta agora semi-fechada pelo membro crianças-obcecadas-por-gelados-que-choram-até-os-pais-cederem. Uma ágil alma plena de modernidade com a parte rente ao umbigo do biquíni com a inscrição Battle (meia nádega esquerda) Royale (ocupando na íntegra a gémea direita).
Desviou-se intrépido das leitoras furtivas das Cinquenta Sombras de Grey e dos concentrados nas novidades futebolísticas com ares de honoris causa a folhear oTimes e continuou.
Evitou, também, castelos de areia ameaçados menos pela maré e mais por pés de atleta distraídos arejando chulés, veraneantes com nadadeira traseira em fio dental e alguns jovens com x e y baralhados.
Desculpou-se ao pisar os que estavam em posição comprometedora de "andamos todos ao mesmo" agarrados entre si como comunidades de mexilhões e venceu mais cinco metros.
À chegada ao local, por todos cobiçado, fez pontaria e ofereceu de chapão o corpo escaldado ao oceano.
Pelas 16.45 a posição estava, completamente, conquistada. A temperatura tinha baixado mas valia a pena.
Sem tempo para saborear a vitória, levantou-se tísico do gelado das águas, por entre os que tinham como ele os cotos a salgar, tilintou os dentes abaixo do necessário para uma dentição normal de adulto e procurou no firmamento dos corta-ventos, barracas e chapéus-de-sol, a toalha Pierre Cardin semi-genuína.
Nada.
Sem sucesso e como um devoto frequentador dos perdidos e achados a única coisa que descortinou foi um grupo de jovens já entradas com as olivas ao sol, lutando por um pedaço de férias e comparando anotações nos missais a postos para as vésperas.
Não encontrou a toalha. Só um rabo conhecido, serpenteando os avançados com paredes de sacos térmicos em forma de Kitchnette, com a inscrição Battle Royale.
O regresso estava comprometido.
Não entrou em pânico e voltou a procurar a Pierre Cardin semi-genuína de verões passados.
Nada.
Procurou, então, a vencedora do prémio o-primeiro-chapéu-de-sol-a-voar-na-praia.
Nada.
Não desistiria.
Em boa altura o fez porque um pouco mais à frente pareceu-lhe ver o anjinho do grupo de crianças-obcecadas-por-gelados-que-choram-até-os-pais-cederem provavelmente ainda a gritar "fónix mãe, compra lá" e "bué da louco".
E, ainda mais importante felizmente, ao longe, conseguiu descortinar um ponto cruz gótico ocupando dois terços de um tórax com o próprio nome.
Era o Tiago.
Estava salvo.