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III Deus não dorme (muito menos ao domingo de manhã)

Sexta-feira, 30.08.13

A campainha toca. 9.45 a.m. Arranjo-me à pressa e vou à porta: de chinelos, o impensável a ver-se, olhos de João Pestana, hálito em fermentação, cabelo de ouriço.

Espreito pelo óculo e atraiçoado pela profundidade de campo que me faz confundir o espírito santo com a publicidade não endereçada apercebo-me das fagulhas infernais que andam pelo ar.

Faço silêncio.

Olho à volta para verificar o que me pode denunciar: música alta, televisão ligada…

Faço-me invisível e escondo-me translúcido atrás da porta. A esquivar-me à “palavra do senhor”. Resignado como Lincoln que: “Pode enganar-se a todos por algum tempo, alguns por todo o tempo, mas não se pode enganar a todos todo o tempo...”

Convencido de ter mais contas acumuladas do que um psicopata sem escrúpulos. Que o mundo acaba até à hora de almoço.

Tocam, novamente.

O suor escorre-me das têmporas do peso da minha consciência.

Espiritualmente esbaforido.

Capaz de enfrentar Zeus, mas com medo de enfrentar os descendentes de Calvino.

Olho, novamente, pelo óculo.

Em apuros.

A poucas polegadas da perdição. Lugar garantido entre os 5 maiores prevaricadores. Translúcido atrás da porta.

A arranjar lugar cativo, na bancada dos sócios de maior valor, no dia do juízo final.

Pecaminosamente em boa forma. Apto para correr a ultra-maratona em contramão na via da virtude.

A olhar pelo óculo. Ainda lá está? Não costumam ser dois?

A adivinhar-lhe as asas a sair das costas por entre o blazer.

Translúcido atrás da porta. A consternação estampada na cara em cor salmão da Noruega.

A pensar: “Porquê eu?”.

A contas com anos de sarcasmo, ironia e trocadilhos.

A gritar abafado.

“Já demos!”, na ponta da língua. “Estamos servidos!”, no fundo da garganta.

Com pena de fingir. Cheio de remorsos. A ferver, lentamente, a  40° o síndrome de Estocolmo.

Desmagnetizado para a fé. Blasfemo.

A apoderar-me a partir do óculo do seu cérebro  e a ordenar-lhe: ”Vai em paz e que o senhor te acompanhe!”.

Oiço, novamente, a campainha.

Abro. Translúcido, a esquivar-me à palavra do senhor, de chinelos, o impensável a ver-se, olhos de João Pestana, hálito em fermentação, cabelo de ouriço.

Olho para as asas a saírem do blazer e em pânico bato arrependido, sincopado, no peito enquanto guincho:

“Misericórdia, misericórdia!”

Os pés já afogueados pelas lavaredas do inferno.

“Salve-me, salve-me!”.

Eu a vê-lo avaliar-me para o juízo final.

E ele a responder-me, calmo, sem asas à vista:

“Importa-se de puxar o carro à frente. É que ontem à noite estacionou frente ao portão da garagem e não consigo sair.

Confirmo que sim que vou só buscar a chave e fecho a porta.

10.00 a.m.

Olho pelo óculo ainda assustado.

O fim esteve à vista. Escapei por um fio.

Preciso de uma bebida. 

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publicado por Carlos M. J. Alves às 17:22





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