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III Ódios de estimação

Quarta-feira, 30.10.13

Antipatizo com ódios de estimação. Não nos dão descanso. Controlam-nos. Seguem-nos fiéis e incansáveis, de soslaio, para todo o lado e atraiçoam-nos na primeira oportunidade. 

   Calculo que toda a gente os tenha, mas arrependo-me como se sentisse o aperto de uma contrição infligida pela minha consciência pesada agonizando, num abraço com o ímpeto de uma anaconda adulta voraz.

   Não chego à penitência e tento não amar o próximo com que me cruzar, mas fico a desejar ter uma natureza vetusta de santo misericordioso, com infinita capacidade de Madre Teresa para perdoar e aceitar as coisas como são (imperfeitas e por vezes abjectas e de mau gosto).

   Infelizmente, peco e acabo sempre voluntariamente a arremessar, violentamente, a primeira pedra, sorrindo comovido ao vê-la planar sobre as minhas vítimas preferidas até as estilhaçar, irremediavelmente, num golpe certeiro letal que só o granito crítico é capaz de proporcionar.

   Gostava de ter um gosto eclético menos lancinante, um palato pouco exigente com os sabores, uma visão com pouca acuidade, fazendo vista grossa ao que a rodeia, uma inteligência analiticamente pouco espontânea e distraída.

   Percebo que os ódios de estimação são contraproducentes, impopulares, fonte de embaraço e de inimizades. Precisam de ser alimentados como Chihuahuas frágeis e esfomeadas. Lembrados, num canal memória com programação própria e contínua, para não caírem no esquecimento. Justificados num julgamento constante, num tribunal sem processos pendentes. Uma canseira!

   Não há dúvidas de que tenho uns quantos ódios de estimação. Bastantes, admito. Que só eu cá sei. Mais outros que são do conhecimento geral. 

  Gostava de encontrar em mim motivação de aspirante ambicioso a Masterchef para os perder. Mas não sigo correctamente a receita. Fico a várias caramelizações aquém de o conseguir. Tiro do forno antes de tempo. 

   Infelizmente tenho a mesma pressa em perder ódios de estimação do que na entrega da declaração de IRS e a mesma capacidade para fazer isso acontecer do que em desfazer-me de jornais e revistas criando pó. Acumulo.

Provavelmente afeiçoei-me.

Pensei começar pelos mais pequenos. Fasquia bem em baixo. Abdicar, lentamente, de meia dúzia de autores e compositores odiosos. Perdoar cores exuberantes. Para depois continuar por aí acima até governos inteiros fracassados e tops inteiros com sucessos improváveis.

Passadas pequenas, mas firmes, em cortejo corajoso, numa complicada estrada até Damasco com sinistralidade de IC perigoso em que, habitualmente, corto a direito ou esbarro atacando a curva como contracurva.

Nem assim!

   Não é fácil perder o hábito. Custa mais do que arranjar lugar em transportes alternativos em dia de greve geral. É mais fácil arranjar ódios de estimação do que perdê-los, acrescentá-los a uma lista implacável já extensa do que vermo-nos livres deles. Como se desbaratássemos preciosidades a preço de bric-à-brac. Com remorsos de quem se desfaz das joias de família.

   Facilmente nos empenhamos em arranjar espaço para mais uns quantos, como quem encafua mais gente na lotação já esgotada de um Mini. Antevemos dificuldades de que quem não encontra lugar na gaveta para as meias novas e desistimos.

   Consciente dos riscos, resolvi jogar pelo seguro. Não faço promessas nem juras que acabam em desilusão. Não me quero transformar num executivo delapidando paciência do erário público. Acrescentando juros ao tempo já perdido, enquanto alimenta ilusões. Compromissos ficando pelo caminho íngreme, numa Falperra de uma vida em que nos esgotamos ainda a meio da rampa.

   Sinto que começam a desistir de mim. Desinvestiram em mim. Exonerado prematuramente. O tempo urge.

Tentarei arranjar motivação de Masterchef para os demover.

Entretanto, nos próximos anos cooperarei, convicto, ainda assim, de que será mais fácil mudar o eixo magnético da Terra do que atingir o que pretendo.

Até porque em relação a ódios de estimação, sinto que ainda não estou no ponto.

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publicado por Carlos M. J. Alves às 19:11





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