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III Proibido fumar

Terça-feira, 03.04.12

10.15 – A mulher-a-dias da reformada que trabalhava na Segurança Social que mora naquele prédio de cinco andares cor-de-rosa entra na pastelaria Argentina. Deixou a reformada na cabeleireira para lavar a cabeça e lhe darem uma arranjadela no cabelo. Coisas de senhora. Com uma casa de banho tão boa! Como habitualmente, compra quatro carcaças bem cozidas: uma para a reformada, outra para si, porque ela lhe oferece o lanche, que ficou logo combinado quando ela foi lá para casa e duas para os netos que almoçam com ela e lhe fazem companhia. Durante o almoço a mãe (a filha da reformada) liga-lhes para eles lembrarem a avó que à noite coma. A mulher-a-dias sai às cinco. «Diz-lhe que coma, não que jante», explica. Convencida que isso basta. Apesar de ter bom aspecto, por causa da doença já troca as coisas e “jantar” e “comer” confundem-na. O bicho não se vê, mas está lá.

   Disse-lhe que estava na mesma. Menti. Não estava.

   - O que tens feito? – perguntei.

   - Nada de especial  – respondeu ela, agarrando-se à crise.

   - Estás na mesma – repeti, voltando a mentir.

   - Tu é que estás – retribuiu, mentindo de volta.

   - O que é feito? – insisti.

   - Um carrito – respondeu, apontando para o estacionamento, orgulhosa.

   - Está como novo – comentei.

  - Sim, mas é em segunda mão – justificou, agarrando-se, novamente à crise.

  - Quem havia de dizer? Tu aqui… - disse, admirado com aquela casualidade na periferia das probabilidades. Com as lágrimas nos olhos como quando para a impressionar «fumei um cigarro» às escondidas no pátio do liceu. O fumo foi inteiro para os meus olhos. Chorei. Foi a primeira vez que chorei por ela.

10.30 – O senhor que trabalha nos escritórios em frente à pastelaria entra, como sempre, para comer um bolo de arroz e beber um garoto. De dentro do balcão alguém pergunta «o costume?» e ele acena com a cabeça. Não é preciso mais nada. Vem a esta hora porque tem um horário flexível. Geralmente sai por volta das nove, nove e meia da noite e entra mais tarde. Já lá está há muitos anos. É divorciado.

   - Tens visto alguém conhecido?

   - Raramente. Foi cada um para seu lado.

   - A tua irmã?

   - Está bem. Não tens irmãos, pois não?

   - Filho único.

   - Já não me lembrava.

   - Os bolos são frescos? – perguntei ao funcionário da pastelaria que servia às mesas.

   - Sim, são. Ainda estão quentes – respondeu pronto.

   - E filhos? – perguntei.

   - Não se proporcionou. Tu?

   - Também não.

   - De certeza que davas um óptimo pai.

   - Achas?

   - Tens ar.

10.45 – A farmacêutica Ana senta-se na mesa de sempre. Ainda é nova. Veste-se como as modelos da Vogue. Pouco lhe sobra do ordenado. Vive para si.

O dono da pastelaria chega por essa hora. Verifica se não é preciso ir buscar trocos e atende-a. Antes de lhe perguntar o que ela quer diz sempre «gosto em vê-la», agradecido pelos medicamentos que ela lhe arranja sem receita médica que lhe evitam levantar-se de madrugada para arranjar médico da caixa e perder uma manhã inteira. Os empregados não percebem porque é que ele não vai a um médico particular, mas ele como gosta de manter as distâncias não lhes dá satisfações.

   - Quem havia de dizer, tu aqui… estás na mesma. Mas conta, o que fazes?

   - Tomo conta de crianças.

   - Sempre gostaste…

   - Tu?

  - Seguros – respondi envergonhado por não ter nada para contar que valesse a pena. Uma vida onde coubessem mais os eteceteras do que os pontos finais.

   - Não adivinhava. Gostas?

   - Paga as contas.

   - Carrito?

   - Não. Muito caro.

   - Passas-me a revista?

   - Claro. Vou à casa de banho. Vai pedindo – acrescentei, lendo a revista aberta na página onde dizia «cadela mais pequena do mundo tem dez centímetros.»

11.00 - «Até aos cães se liga», diz o senhor Antunes da relojoaria ao fornecedor que o acompanha, ao passar pela nossa mesa. Deve ter visto o artigo da cadela mais pequena do mundo. «Desta vez pago eu», diz peremptório.

   - Desculpa. Demorei. A casa de banho tinha gente. Tive de esperar. Já pediste?

   - Um galão escurinho e meia torrada. Tu?

  - Passei pelo balcão. Só quero uma bica. Não consigo comer nada de manhã.

   - Como perguntaste se os bolos eram frescos… Isso faz-te mal. O Zé era igual…

   - Foi por ti…Costumas vir aqui? Como nunca nos cruzámos...

   - Quando venho ao cemitério. O Zé, contaram-te?

   - Sim, sim.

   - Agora até já consigo vestir vermelho.

   - Bom tipo.

   - Não mexia em nada de ninguém. Telefonava-me sempre quando chegava ao emprego.

   - Pois… pelo menos não há filhos, não é? Era mais difícil.

Não respondeu. Passámos os dois os olhos pela revista. Pela fotografia da cadela com dez centímetros. De que raça seria? Não reparei se dizia no artigo. Provavelmente.

11.15 – Todas as mesas da pastelaria estão ocupadas. É habitual àquela hora. Também não são muitas. Começa a fazer falta uma esplanada para quem não gosta de estar fechado. E para os fumadores. Cruzamo-nos, à saída, com o senhor que mora no segundo andar da pensão. Aquela que vendeu o telhado à EDP. Quando voltou, de vez, do estrangeiro, achava que nada do que se fazia por cá podia ser comparado ao que se fazia lá fora. Vem de dar milho aos pombos que pousam no revolucionário que está na praça. São a sua companhia. A única, pelo que dizem.

«Os bolos são frescos?», pergunta-nos. «São de hoje», respondi. «Para eles são sempre frescos», responde pouco convencido, enquanto conta as moedas. «Com o dinheiro não se brinca», comenta, despedindo-se com um aperto de mão forte. “À homem”, como dizíamos quando eramos pequenos.

   - Tenho de ir. Só saí para tomar café.

   - Hoje é o meu dia de folga. Queres boleia? – pergunta-me, apontando para o carrito.

   - Não, obrigado. Estás, realmente, na mesma.

   - Que ideia.

Os olhos dela estavam com lágrimas. Os meus também. Como se nos tivesse entrado fumo. De um cigarro fumado para impressionar.

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publicado por Carlos M. J. Alves às 10:39

III Dois sapatos esquerdos

Domingo, 11.03.12

Margarida tem os olhos cansados. Margarida gosta de revistas sobre gente atraente. Os pais são pessoas normais.

Na escola os professores queixam-se de que nos dias em que ela não vem com os olhos cansados ela não aprende. Os pais compreendem e desculpam-se dizendo que ela é lenta a aprender.

Margarida tem os olhos cansados porque o médico lhe receitou um medicamento que os cansa. Os pais concordaram porque entendem que essa é a única maneira de ela se concentrar.

Sem os olhos cansados a sua cabeça ocupa-se com coisas que não vêm a propósito.

Com os olhos cansados Margarida é uma rapariga completamente diferente. Nisso toda a gente concorda: pais, médico e professores.

      Margarida não é uma rapariga como as da sua idade. Não tem interesses, dizem. Não liga a cinema. Não pega num livro. A escola aborrece-a. E não gosta de música. O que é estranho para os pais, que são pessoas normais. A única coisa, para além de revistas com gente atraente, que lhe interessa é a moda. Passa as aulas a fazer desenhos com manequins desfilando vestidos imaginados por si. O médico que lhe põe os olhos cansados já lhe explicou que para isso é preciso estudar muito e já. Não há tempo a perder! Os passos começam muito antes de se chegar aos sítios, argumenta. Os pais dizem-lhe que ela assim não vai ser ninguém. Quando não tem os olhos cansados Margarida responde-lhes (torto) e barafusta. Mas o medicamento que lhe põe os olhos cansados é para ser tomado logo a seguir ao pequeno-almoço e, por isso, não é frequente isso acontecer. «E que tal?», pergunta a mãe sempre que lhe dá o remédio, esperançosa. Procurando outra filha na que tem à sua frente. A rapariga não responde.

        Um destes dias os pais de Margarida foram convocados para uma reunião na escola, para falar sobre o seu aproveitamento. Apanharam um táxi que tinha uma placa onde dizia: «A tua inveja faz a minha fama».

Margarida passou a viagem de olhos cansados e olhar vazio fixo nela.

        - Não tinhas outras calças? – admoestou a mãe quando reparou nos seus jeans rotos pela moda.

Na portaria da escola deixaram um documento identificativo e o porteiro indicou-lhes a sala onde se deviam dirigir, pedindo que aguardassem.

      - A verdade é que sempre fui uma criança feliz - disse a mãe, na primeira oportunidade, à professora que a recebeu a si e ao marido com o seu escanhoado bipolar e o pulmão cardíaco que o faz tossir em arritmia. Disse-o para explicar que às vezes o sangue é como um rio que se afasta da foz. Para não haver dúvidas de que são pessoas normais.

     - Olá, Margarida – cumprimenta a professora, incomodada pelo pulmão cardíaco do pai. A Margarida tem feito grandes progressos, disse a professora para tranquilizar os pais. Sorrindo para ela.

A mãe orgulhosa, incomodada com os jeans rotos pela moda, agradece, reparando que ela tem dois sapatos diferentes que calçou distraída, muito cedo, antes de ter os olhos cansados. Envergonhada olha para o marido em convulsão, desejando a invisibilidade para ambos. 

    - E o português? Tens alguma palavra difícil? A minha era escanaficobético – diz a professora brincando.

    - Para ela todas são difíceis. Nunca vais ser nada na vida – acrescenta a mãe, olhando para os dois sapatos esquerdos, entre dois AVC’s do pulmão cardíaco do marido.

     - Não diga isso – contesta a professora – olhe que a Margarida tem feito grandes progressos.

     - E que tal? - pergunta a mãe a Margarida, procurando outra filha na que tem à sua frente.

     - Grandes progressos, grandes progressos… - continua a professora.

     - A tua inveja faz a minha fama – responde Margarida com os olhos cansados.

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publicado por Carlos M. J. Alves às 14:46





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