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III Sobre a possibilidade de se voltar aos sítios onde se foi feliz

Quinta-feira, 01.11.12

Voltar ao sítio onde se foi feliz é voltar a nós mesmos. A uma parte que já não nos pertence, mas que não ficou esquecida. A uma convivência interrompida.

   O sítio onde se foi feliz vive de momentos e lembranças. É um mundo inteiro, o nosso sonho preferido, uma praia deserta, um eterno pôr-do-sol, um banco de jardim, um país, uma mesa de restaurante com poucos clientes, um teatro com peças de Strindberg, uma sala de cinema semi-deserta, um bar com decoração fin de siécle, um  velho alfarrabista sem novidades. É uma música fora de moda que se tornou um hino. Fica num poema muito repetido, em pequenos gestos, naquela fotografia gasta, em prendas de aniversário antigas e lembra-se em datas especiais. Cabe, perfeitamente, numa rua. E chegam-lhe  algumas palavras e umas quantas recordações.

   No sítio onde se foi feliz os números de telefone não mudam e os prédios nunca perdem a cor. Está cheio de heróis e caras conhecidas. É sobredimensionado, colorido, desensombrado, alegre. Nele nunca se sente fome, sede ou cansaço. Não se dorme, nem se dá pelo calor ou frio.

    Mas, o sítio onde se foi feliz mudou de lugar. Não está onde o deixámos. Onde tínhamos a certeza de que o voltaríamos a encontrar. Fugiu-nos debaixo dos pés. Já não é nosso.

Está diferente: inabitado, irreconhecível. Uma sombra do que foi. Não é como o pensámos. E não está em lado nenhum. Aquém e além de nós, ou essa é pelo menos a sensação que dá, mas é só porque não é o que parece.

Desilude-nos, também, por isso.

É mais uma ideia do que uma realidade ou uma vontade mais do que uma certeza.

     O sítio onde fomos felizes desaparece quando estamos frente-a-frente com ele. Foge de nós.

Talvez porque só se seja feliz num sítio uma única vez.

    O sítio onde se foi feliz não espera por nós. Continua sem darmos conta. Obriga-nos a olhar noutra direcção diferente.

    O sítio onde se foi feliz só serve para quem lá ficou. Estranha a nossa presença.

Quer ter um ar moderno. Tem novos interesses, novos inquilinos, namorados apaixonados, enamorados à primeira vista, amantes ardentes. Frequenta novas paragens, vive de outras companhias, aprendeu novas rotinas e tem truques recentes. Refez a sua vida.

Não nos pede para voltarmos mas, também, não nos fecha a porta na cara.

Aparentemente não sentiu a nossa falta.

   O sítio onde se foi feliz teve o seu tempo. Só não é intemporal porque não tem idade.

Só nos fala e toca a nós e só nós é que o percebemos.

Ficou para trás. Já passou. Foi bom enquanto durou.

Serviu para estar onde estamos agora e já não faz ciúme àquele em que nos encontramos.

O melhor que temos a fazer é seguir em frente.

    Porque o sítio onde se foi feliz já não existe.

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publicado por Carlos M. J. Alves às 07:54

III Cara-metade

Segunda-feira, 10.09.12

Um Romeu sem Julieta só vale metade. O mesmo se diga de Bonnie sem Clyde. Furos abaixo das possibilidades, subaproveitados e aquém das expectativas.

   Essa é, pelo menos, a minha desconfiança. A cara-metade é a parte em falta. O nosso find Wally particular. Os cinquenta por cento que procurávamos e nos equilibram o orçamento sentimental, hormonal, afectivo. Que nos escapavam ou escondiam e nos oferecem a redenção para as nossas insuficiências.

A cara-metade preenche, completa. É um passo de gigante para uma dream team, conquistando campeonato atrás de campeonato.

Está na cara!

   Mas, complica-nos as contas. Esquiva-se. Às vezes é o trabalho de uma vida e outras não chega. Por não sabermos muito bem onde procurar, para começar. E porque vive de encontros e desencontros, de experiências, erros de casting, de ir em conversas.

  Quem procura cara-metade tem de ter para oferecer à procura. Seja ela obcecada, espontânea, desinteressada, metódica, sem rei nem rock. Capaz de afugentar, motivar, estimular. Atenta, encontrando quando menos se espera, com sucesso quando não procura. 

Quer em pânico ou ânsias. Quando exagerada ou discreta.

Como quem não quer a coisa ou apregoada aos quatro ventos.

Em andamento acelerado ou instalada, confortavelmente, numa  LC4 Chaise Longue exclusiva, com a revista preferida disponível.

   Quando o encontro é feliz é a nossa cara. Inteira. Somando e seguindo.

Encaixa. Avança em progressão de Tangram, já com Wally debaixo da asa.

Dá-nos a sensação de estarmos ou sermos completos. É um compromisso desejável.

   A cara-metade tem a ver com ir com ela.

Se todo o bocadinho acrescenta, em relação a qualquer cara-metade o que dizer dumas suíças fartas e cuidadas para toda a vida?

   Mas há mais perguntas. 

Quem dá para cara-metade?

E o que é que leva a uma?

O que fica para cara-metade?

O que se exclui?

Tormentos?

   Em relação a esses, não são meia dúzia de sardas ou um nariz mais aquilino que impedem de se juntar à sua cara-metade. Ou o ruivo mais crespo e arrepiado.

Também não há regras. A uma cara redonda pode caber uma cara-metade pontiaguda.

Ao rosto mais luminoso pode convir uma cara-metade sorumbática.

Às maçãs do rosto mais vermelhas a tez mais pálida.

Com sobrancelha farta pode ir bem um par de circunflexas.

A anca roliça não afugenta.

A barba hirsuta não intimida.

O esquálido não tem que se sobrepor ao gordo.

Dente encavalitado pode não rejeitar dentição perfeita como, também, a pode trocar por um sorriso desdentado.

Às vezes até o improvável resulta. Como aqueles gelados Ben & Jerry’s com sabores e combinações estranhas. Uma cara-metade pode muito bem ser um Late Night Snack (sorvete de baunilha com calda de caramelo levemente salgada com pequenos pedaços de batata frita, segundo indicação dos próprios). Metaforicamente falando, claro!

Atenções?

   As caras-metades podem não ser um verso e reverso perfeito. Escolher cara, sair coroa e não resultar daí dano. Uma roca com mais de um fuso.

A cara-metade pode não ser evidente.

Pode até, muito bem, não ser a escolha perfeita.

Por ir por tentativas, acabar não acertando à primeira, segunda ou terceira.

Findar ou começar num piscar de olhos ou passar despercebida enquanto ele dura.

A cara-metade pode ser a parte mais feia ou mais bonita.

Pode ser um + que se junta a um - ou o contrário.

Nem sempre tem lógica.

   Mas para funcionar, a cara-metade é acolitada por uma personalidade que encaixa, uma química que não aparta, gostares que não chocam, regras que não impedem, manhas, tiques e manias que não impossibilitam a convivência.

Complicações?

   Nem sempre se percebem ou antecipam. Porque quem vê caras nem sempre vê corações e há quem consiga esconder no mais recôndito dos fundos o que não interessa: um ressonar porcinobufando em apneias asfixiantes e sonoras; não se importar de viver num aterro sanitário e em Karaoke histérico e constante.

   Porém, se a Romeu se subentende Julieta, no que às caras-metades diz respeito, com o tempo vão aparecendo borbulhas temperamentais, alguns pontos negros de mau feitio, rugas inultrapassáveis. Os resultados deixam de aparecer.

O problema maior é aquela altura, triste, terrífica, princípio do fim, em que se olha para o espelho  [tarde demais para um  facelift conciliador]  farto do que se vê e sem gostar mais da cara... metade.

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publicado por Carlos M. J. Alves às 09:36

III Não há amor como o primeiro?

Sexta-feira, 24.08.12

Então, não há amor como o primeiro? Fosse isso rigoroso e estávamos todos casados com o anjinho de asa anafada que se sentava, confidente, na berma da secretária da professora que parecia ter o exclusivo da eau de toilette bien être de 500ml. Aquela a quem se surripiava os totais das divisões na escola primária e se lançava ais enamorados. A que nos conquistou, inocente, as fronteiras sentimentais em estruturação e passou a salto pela veia cava e aurículos acima, esburacando ventrículos e depois todo o nosso coração, até este não passar de um queijo suíço impróprio para consumo. Lívidos. Logo desde o primeiro dia de aulas, amarfanhando-nos, zombeteira, a sintaxe amorosa irremediavelmente.

Não há amor como o primeiro?

Não me parece. Sobre o primeiro amor alardeamos uma apoteose falsa.

A minha opinião?

Bem, essa está aqui! Confira-a e deixe a sua.

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publicado por Carlos M. J. Alves às 08:20

III O coração é uma grande dor de cabeça

Domingo, 08.07.12

Mesmo em época de casa e descasa, mesmo que se faça orelhas moucas, e que se diga que só serve para o que a gente sabe, o coração é que manda. Não vai em troikas.

A prudência aconselha-nos a desconfiar dele. Uma vez que a inteligência vai, imediatamente, de carrinho e a inconsciência se outorga privilégios especiais nas suas imediações. Mas nós vamos na conversa.

Até o tempo passa de maneira diferente sob a sua influência. Uma vida pode ser pouco, mas dez minutos podem ser demasiado. Depende das circunstâncias.

   «Quem não se sente não é filho de boa gente», dizem quando as coisas descarrilam. Também se diz que «o que os olhos não veem o coração não sente». Mas o coração sente e vê primeiro do que nós. E tira as suas próprias conclusões. Sem dar cavaco. É autónomo. Não precisa de nós para nada. Não ouve a nossa opinião. Nem precisa de conselho. É de ideias fixas e sabe o que quer. É obstinado. Persistente. Teimoso. Não vê necessidade em justificar-se. Só depois quando apanha por tabela é que se lembra que existimos. E vem chorar no nosso colo. Sofrendo dos seus males. Procurando consolo. Desculpando-se. Arrependido de nos ter abandonado. Aflito. Carente. A precisar de um ombro amigo. Aí volta-se para nós. Ronronando. Como noutras alturas, consegue ser convincente. Encetando uma amizade colorida. Está bom de ver que não se trata de trocados.

O coração é um bico-de-obra. Só dá chatice. Afinal, nunca ter sofrido por sua causa é tão improvável como nunca ter acabado com o nariz a pingar e a caldos de galinha, por culpa de uma gripe.

   Em matérias de coração diz-se que tudo vale a pena. Para mais ele pode ser mole. Justifica-se mesmo o impossível. Ou o, meramente, improvável.

Há os que o têm de poeta. Quem o tenha grande. Os recatados. Os abnegados. Os que o têm bem fechado a sete chaves. Os que parece que o têm entupido. Os que renunciam a ele. Os que parece que não o usam. Ou não precisam dele.

Os que o têm gelado. Os que andam pela vida espremendo os dias de peito aberto. Os que nunca aprendem. Constantemente embriagados por ele. E os que andam com o coração ao pé da boca. Os últimos são os que se dão. À morte. E ao que calha. Sem pensarem duas vezes. Imprudentes. Vão em cantigas. Arriscam. Petiscam. Dão dois passos à frente e três para o lado. Iludem-se. Arrependem-se. Sofrem. Têm que estar preparados para levar porrada. Para oferecer o corpo às balas. Em versão, o que arde cura. Mas parece que não se importam.

Quem poderá dizer quem sai beneficiado?

   Em matérias de coração quem sabe tudo? Ou alguma coisa que seja? Quem tem privilégios de cátedra? Ninguém está a salvo e o corpo é que paga. É mais sensato assumir a posição de leigo. Humilde. Ansioso. Inexperiente. Em formação. Mas com vontade de aprender. Esforçado. Ultrapassando os azares. Convicto de que às vezes as contas saem trocadas.

Não há caminhos fáceis. Atalhos. Só alguns becos sem saída. Avança-se às cegas. Não há preview.

   Em matérias de coração, em certas alturas dá vontade de o arrancar com as próprias mãos. Não chega oferecer flores. Escrever cartas de amor. Idas ao cinema. Ou convidar para jantar. Há sempre um novo dia. Isso é certo. Mas uns são melhores do que outros.

   Em matérias de coração, o outro faz sempre pior figura do que nós. Felizmente a memória é curta. E a melhor maneira de ultrapassar o susto é com mais do mesmo. Voltar a montar depois do tombo.

   Em matérias de coração a mulher do nosso melhor amigo é homem e a namorada irmã. Quem não sabe isso?

   Uma coisa é certa, em matérias de coração andamos sempre com lições em atraso.

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publicado por Carlos M. J. Alves às 11:43

III O amor só dá trabalho

Quinta-feira, 24.05.12

O amor dá muito trabalho.

Exige ser disciplinado.

Disponível.

Flexível.

Arrumado.

Que se goste de amigos que não eram nossos.

E dos pais.

Necessita de assoalhadas apropriadas. Suficientes.

Espaçosas, bem situadas, em bom condomínio, arejadas, pouco húmidas e com óptima luz natural.

Exige que vamos buscar os miúdos ao infantário.

Os baldes do lixo sempre despejados.

A casa aspirada.

Os tapetes sacudidos.

A relva aparada.

As manchas tiradas.

Pó limpo.

Pratas areadas.

Azulejos desengordurados.  

As compras feitas.

A contabilidade tratada.

A loiça a escorrer ou, pelo menos, na máquina.

O arroz lavado.

A salada temperada.

Champanhe.

Morangos.

Desenvoltura na bricolage.

Que o cão já tenha ido à rua fazer o passeio habitual.

Que as lâmpadas sejam, rapidamente, subistituídas.

Mesa posta.

A roupa estendida, a secar.

Exige vestuário a combinar (para ela).

E barba feita (por causa dela).

As datas dos aniversários sabidas.

Os miúdos de banho tomado.

Precisa de, pelo menos, uma música preferida.

Imaginação.

Pontualidade.

Paixão.

Cartas, mensagens, telefonemas, expressões e palavras ridículas.

Luz de velas.

Restaurante habitual.

Vinho que se descobriu juntos.

Dose que se partilha.

Passeios de mãos dadas à beira-mar.

Um pôr-do-sol esporádico.

De lareira acesa.

Da chuva a cair, batendo na vidraça.

Da pele a cheirar ao outro.

De atenção contínua.

Aos pormenores e não só.

Do creme protector a postos.

Passaporte em ordem.

Reservas de última hora.

Destinos imprevistos.

Hotéis charmosos.

Propostas pouco recomendáveis.

E…

   O amor dá muito trabalho.

   Como tudo o que vale a pena!

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publicado por Carlos M. J. Alves às 21:14

III A orelha de Van Gogh

Segunda-feira, 26.03.12

Nascemos todos com vontade de amar. Ser amado é secundário.

Prejudica o amor que muitas vezes o antecede.

 

Miguel Esteves Cardoso, O Amor é Fodido, Assírio & Alvim, 1994.

 

 

Ele diz para ela: «É só um beijo». «Não», responde ela. «Este é diferente», acrescenta. E ele de coração despedaçado desiste e volta para o recreio cheio de nódoas negras. Do primeiro amor não correspondido. Sem Hirudoid para as curar.

   O cínico dirá que a única razão porque nos lembramos do primeiro beijo é porque não foi grande coisa. Mas se há coisa que Miguel Esteves Cardoso (MEC) nos ensinou é que O Amor é fodido. O que é muito mais convincente (pelo menos para mim) do que dizer que «é fogo que arde sem se ver». Talvez essa fosse uma abordagem interessante na época de Camões, mas os tempos são outros.

  Há dias em que temos o nosso quê de Mick Jagger orgulhosamente reconhecendo I’m Lucky at Love, mas na maioria dos casos e dos dias andamos macambuziamente Morrissey, ensimesmados, em pose Last night I dreamt that somebody loved me. É assim o amor.

Leva-nos à loucura. Em cada um de nós passa a haver um Van Gogh disposto a cortar uma orelha.

Alucina-nos. Tem sintomas de quem toma metanfetaminas.

Segundo o poeta, inspira cartas ridículas.

Exageradas, pungentes, apaixonadas. Quem não as escreveu?

Dá-nos vontades. Ânsias. Se se proporcionasse adoptávamos Oliver Twist.

Embaraça-nos. Por ciúme leva-nos a atitudes make my day punk. Irreflectidas. Arriscadas.

É fruto de uma vocação ancestral de procurar a outra metade. Gémeos frustrados. O meu reino por uma alma gémea.

É um murro no estômago. Um pontapé nos… Percebem, certo?

   It´s a dirty job but somebody got to do it.

Tem poderes alquímicos. Transforma sapos em príncipes.

Vende melhor do que pãezinhos quentes. Mas, sai caro. Não é uma pechincha baratucha do eBay.

Acerca dele como em relação ao que importa só sabemos que nada sabemos.

   E, anos mais tarde, mais experientes, percebemos que ela tinha razão, era um beijo diferente. Era o primeiro.

   É isso o amor. Fodido. Os anos passam, mas…

Quem não aprendeu foi porque não quis. No hope, no harm Just another false alarm, comentaria Morrissey com os The Smiths.

Obrigado MEC pela lição.

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publicado por Carlos M. J. Alves às 15:42





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