Máquina da Preguiça®
O texto é uma máquina preguiçosa [Umberto Eco]
III Deus não dorme (muito menos ao domingo de manhã)
A campainha toca. 9.45 a.m. Arranjo-me à pressa e vou à porta: de chinelos, o impensável a ver-se, olhos de João Pestana, hálito em fermentação, cabelo de ouriço.
Espreito pelo óculo e atraiçoado pela profundidade de campo que me faz confundir o espírito santo com a publicidade não endereçada apercebo-me das fagulhas infernais que andam pelo ar.
Faço silêncio.
Olho à volta para verificar o que me pode denunciar: música alta, televisão ligada…
Faço-me invisível e escondo-me translúcido atrás da porta. A esquivar-me à “palavra do senhor”. Resignado como Lincoln que: “Pode enganar-se a todos por algum tempo, alguns por todo o tempo, mas não se pode enganar a todos todo o tempo...”
Convencido de ter mais contas acumuladas do que um psicopata sem escrúpulos. Que o mundo acaba até à hora de almoço.
Tocam, novamente.
O suor escorre-me das têmporas do peso da minha consciência.
Espiritualmente esbaforido.
Capaz de enfrentar Zeus, mas com medo de enfrentar os descendentes de Calvino.
Olho, novamente, pelo óculo.
Em apuros.
A poucas polegadas da perdição. Lugar garantido entre os 5 maiores prevaricadores. Translúcido atrás da porta.
A arranjar lugar cativo, na bancada dos sócios de maior valor, no dia do juízo final.
Pecaminosamente em boa forma. Apto para correr a ultra-maratona em contramão na via da virtude.
A olhar pelo óculo. Ainda lá está? Não costumam ser dois?
A adivinhar-lhe as asas a sair das costas por entre o blazer.
Translúcido atrás da porta. A consternação estampada na cara em cor salmão da Noruega.
A pensar: “Porquê eu?”.
A contas com anos de sarcasmo, ironia e trocadilhos.
A gritar abafado.
“Já demos!”, na ponta da língua. “Estamos servidos!”, no fundo da garganta.
Com pena de fingir. Cheio de remorsos. A ferver, lentamente, a 40° o síndrome de Estocolmo.
Desmagnetizado para a fé. Blasfemo.
A apoderar-me a partir do óculo do seu cérebro e a ordenar-lhe: ”Vai em paz e que o senhor te acompanhe!”.
Oiço, novamente, a campainha.
Abro. Translúcido, a esquivar-me à palavra do senhor, de chinelos, o impensável a ver-se, olhos de João Pestana, hálito em fermentação, cabelo de ouriço.
Olho para as asas a saírem do blazer e em pânico bato arrependido, sincopado, no peito enquanto guincho:
“Misericórdia, misericórdia!”
Os pés já afogueados pelas lavaredas do inferno.
“Salve-me, salve-me!”.
Eu a vê-lo avaliar-me para o juízo final.
E ele a responder-me, calmo, sem asas à vista:
“Importa-se de puxar o carro à frente. É que ontem à noite estacionou frente ao portão da garagem e não consigo sair.
Confirmo que sim que vou só buscar a chave e fecho a porta.
10.00 a.m.
Olho pelo óculo ainda assustado.
O fim esteve à vista. Escapei por um fio.
Preciso de uma bebida.