Máquina da Preguiça®
O texto é uma máquina preguiçosa [Umberto Eco]
III A glamorosa vida com um robot de cozinha
Cumprimentou-me sorridente. De dentes luzidios sobrando e cabelo, novo, à Björn Borg, saído de 1980. Loiro súbito. Lembrando quando distraímos John McEnroe, provocando-o a partir do meu sofá, só para lhe roubar o Grand Slam e colocar Wimbledon aos pés do sueco.
Eu recordando-o em bate-boca aceso comigo, aos nove, sobre quem tinha o predomínio em poderes: o homem aranha ou o de ferro. O de ferro derrotando tangencialmente.
Alegre. De sportswear jovial. Varão novo. Disponível. Em circulação. Fresco e magro. Curado das escoriações na auto-estima. Esquecido dos tempos do: "A minha mãe bem que me avisou acerca de ti!", "Gostava de saber para o que é que me serves", "Não dizes nada porque não te importas!". Esgotado. Domado. Imolando-se na auto-comiseração ante a praga de gafanhotos recriminatória, avançando à tripa-forra. Perguntando-se: "Onde é que eu estava com a cabeça?!". A descambar. Em dores lancinantes. Pronto para fazer mossa. Ir comprar cigarros e não voltar. Desarriscar-se de sócio. Uma lástima.
Eu com os olhos lassos, prostrados no chão, fugindo, sem assumir posição. Simulando distracção. Dividido. Sem tomar partido. Avesso aos lados. Surdo para as injúrias. Contaminado pela filoxera.
Ele olhando para mim, esmolando auxílio, plácido. E eu a dissuadi-lo de me ver como aliado. Mandando-o para o grupo dos do casamento em vias de desenvolvimento. Olhando-o com a condescendência de: "Quem te dera a ti!". Insinuando: "Para a minha, só do melhor". Provando-lhe merecer a camisa engomada. Embaraçado por não ter dado como devoluto o lixo da cozinha e casas de banho.
Dando-lhe com os olhos a ideia: "Tens muito que aprender!". Afiançando-lhe: "Bonito serviço!".
Ele estudando-me, sitiado, pedinchando socorro afectivo e eu mais Sancho que Quixote, indisponível para gigantes alheios: "É que se está mesmo a ver!".
Agora, ali, sarado. De grilhetas desfeitas. Em glória. De pelo recauchutado. Polido. Perfumado em cocktail botânico chuviscando bergamota e lavanda. Bom partido.
Sorridente. Porte escrutinado pelo ATP. Novamente solteiro. Revirginizado. Vitorioso. VIP.
"Então?"
"Há quanto tempo!"
"Desde que vocês...", insinuei, sem coragem para perguntar o habitual: "Como é que te estás a aguentar?".
"Pois..."
"Que fazes?"
"Fui comprar umas coisas para fazer o jantar.", afiança erguendo as mercas, deixando a nu os botões refulgentes de dinastia ignorada e vegetais de três continentes, aparecendo dos embrulhos.
"Mas tu não cozinhas.", comentei admirado de o ver desertando do "Hoje há conquilhas!" que frequentava em datas de soltura.
"Isso era quando estava com ela... agora com as festas e tudo mais..."
"Qual é o segredo?", inquiri, estupefacto.
"Comprei um robot de cozinha.", esclareceu como se tivesse subjugado, com um cyborg em protótipo, a última fronteira da gastronomia, cortando, ralando, cozendo e estufando até à liberdade humana plena em output pantagruélico estável e constante. Resvalando no maracujá, trufa ou risoto milanês. Ofertando consomé. Rendilhando comezainas. Em Tordesilhas marcando um antes e depois da máquina.