Máquina da Preguiça®
O texto é uma máquina preguiçosa [Umberto Eco]
III As cinquenta sombras de Grey, segundo Clara Ferreira Alves
Já calculava, mas o artigo de Clara Ferreira Alves serviu para confirmar o que pensava sobre o fenómendo de vendas, As cinquenta sombras de Grey:
(...) A audiência feminina comprou estes livros e transformou E.L. James numa multimilionária e numa das 100 pessoas mais influentes do mundo da Time*. A maioria das mulheres não gosta de BDSM [bondage, submission, sadism, masoquism], e não corre o risco de gostar, as feministas podem dormir descansadas, mas gostam de ler uma história de amor impossível, em que os amantes se pegam e se largam e não podem viver um sem o outro. É outra forma de submissão e dominação.
E.L. James não escreve bem nem mal, apenas descreve. Às vezes, num estilo pedestre, mas não estamos à espera de Dostoievski. Erica Jong, nos anos 70, com o seu 'Fear of Flying' e a invenção da zipless fuck, a dita sem fecho éclair, foi mais longe e de um modo infinitamente mais perverso, cómico e inteligente. Não teve a sorte das nossas tecnologias a tornarem viral, mas vendeu 20 milhões de livros. Jong é uma escritora, James (que se chama Erika Leonard) é uma Corin Tellado** do séc. XXI.
in Lux Woman nº138
*Quem estiver com curiosidade sobre o fenómeno Fifty Shades of Grey tem, ainda, um documentário alusivo do Channel 4.
**Escritora que escrevia romances de amor (noveletas cor-de-rosa será o termo mais apropriado) com capas imitando as poses de Clark Gable e Vivien Leigh, Rhett Butler e Scarlett O'Hara em 'E tudo o vento levou'.
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III É favor não fumar na bomba de gasolina
Os homens são como as ondas,
quando uma geração floresce,
a outra declina.
Homero
O depósito ía a meio quando reparei que num carro próximo, disputando comigo a vez, um sujeito impaciente fumava ostensivamente, lançando desrespeitoso a cinza para o exterior, iletrado perante a sinalética de segurança, peremptório na sua arrogância e pronto para deitar borda-fora em incandescência o cadáver do seu vício.
A estupidez tem cheiro e pode muito bem ser a gasolina misturada com tabaco!
Comuniquei ao funcionário a míopia no que ao civismo dizia respeito do indivíduo e paguei.
Irritado e pouco propenso a grandes reflexões, ainda assim, lembrei-me de um dos recentes artigos de Clara Ferreira Alves (CFA) que no Expresso, como a autêntica Pluma Caprichosa que costuma ser, se debruçou sobre a actual situação grega. Ich bin grega, dizia.
A apatia geral. O desgoverno. A corrupção. A especulação imobiliária nos pontos mais turistícos. A falta de escrúpulos. Os carros estacionados nos passeios. E a indiferença moral em relação a tudo isso. O laissez-faire generalizado. A Grécia que nos civilizou, nos deu a democracia, a filosofia e a maneira de nos entendermos vive num desinteresse crescente. Num “nada a perder” ou “deixa andar”. Mais pobre.
Semelhanças connosco? Sim. Óbvias. Um cenário que, em grande parte, nos faz lembrar o Portugal subserviente às exigências da Troika, como admitia CFA. De gente antipática desrespeitando o que encontrar pelo camindo (o seu). Onde calha. Em lugares de destaque ou enquanto atesta o carro. Fazendo vista grossa à dignidade alheia.
Foi de tudo isso que me lembrei na bomba de gasolina. A Europa e a Grécia e Portugal, em particular, estão mais pobres. Por ironia, “pobre” resulta de duas palavras helénicas “penef”, remetendo para um viver modesto e aliado ao necessário e “ptohoi” para a mendicidade ou inexistência de sustento.
É quase institiva a raíz grega. Congénita. O berço civilizacional grego foi pródigo. Irreconhecível na actual Grécia de que fala CFA. Também podíamos falar no caos presente, do grego “kháos”.
Não é precisa tradução, pois não?
Já falência, palavra de uso recorrente, tem o passado latinizado em “fallentîa” e aponta, entre outros significados possíveis, para a falta.
E é notório que há muito a faltar-nos. A ruína económica estendeu-se à dos valores.
Isso é evidente até numa simples bomba de gasolina.
Mesmo antes de pagarmos o combustível, cujo preço nos coloca automaticamente no nosso devido lugar europeu.
Partilhado, obviamente, com os gregos.
Um universo paupérrimo, sem favores especiais para quem já deu mundos ao mundo e incapaz de se compadecer com berços.
Bem lá no fundo.