Máquina da Preguiça®
O texto é uma máquina preguiçosa [Umberto Eco]
III Deixar de fumar é uma questão de tempo
O vizinho do lado a puxá-los e eu a resistir. À justa. À rasca. Queixoso. Tentado. A vê-los amontoar. A quererem saltar do maço. Insinuando-se em elipses. Provocando-me, género E.T come home.
Nada! Puro desprezo. Por mim acaba tudo esticadinho e feito às postas no Roswell-cinzeiro sob a forma de beata.
É oficial. Deixei de fumar. Anunciei-o ao mundo, claro! Em jeito Lauro António apresenta. Até porque, com o deixar de fumar nasce um novo tópico de conversa: dizer que se deixou de fumar, que as ameaças, finalmente, se concretizaram. Passa a existir, insistentemente, um «sim, sim, mas não sei se sabem deixei de fumar» que arrepia caminho.
Influxos de uma adrenalina especial sobem e descem por mim como numa montanha russa.
Sinto-me Free at last! Oh, Lord! Free...at...last!
A auto-estima ressente-se. Adapta-se. Acomoda-se. Com o deixar de fumar o “não” sai fortalecido. O “talvez” perde preponderância. E o “sim” é destronado. Em algumas alturas parece desenrolar-se dentro de mim um episódio de Kung Fu e eu sou Kwai Chang Caine aka David Carradine, cheio de dúvidas:
Disciple Caine: Master, our bodies are prey to many needs: hunger, thirst, the need for love.
Master Kan: In one lifetime a man knows many pleasures: a mother's smile in waking hours, a young woman's intimate, searing touch, and the laughter of grandchildren in the twilight years. To deny these in ourselves is to deny that which makes us one with nature.
Caine: 'Shall we then seek to satisfy these needs?
Master Kan: Only acknowledge them and satisfaction will follow. To suppress a truth is to give it force beyond endurance.
Deixei de fumar. Não há volta a dar. Sinto-me mais sábio. Com consciência Shaolin. Arrebatado por uma iluminação a que falta unicamente a fluorescência.
Se a inveja fosse viscosa existiria um rasto de baba e ranho à minha volta que se prolongaria até às Seychelles, com origem nos que não me perdoam ter conseguido.
Nunca me dei prazos. Embora a expressão deadline, tendo em consideração o contexto, fizesse sentido. Também nunca houve uma avaliação vox pop, de anos, de evidências de que o tabaco faz mal. Fui deixando avolumar as desculpar em estratégia hit-Parade até me sentir preparado. E um dia como uma surpresa Kinder consegui. Uma mera questão de bom timing? Talvez.
Agora que efectivamente consegui, embora tenha passado pouco mais do que o tempo de um single (ainda existem?) parece uma eternidade. A satisfação faz-nos aldrabar o tempo (também o psicológico). A cronologia. Triplica-se os dias. Arrebatam-se semanas. Desrespeita-se as regras da adição. Um dia sem fumar vale mais do que vinte e quatro horas convencionais. Até porque, sem fumar nos sobra tempo. Por exemplo, para dizer que deixámos de fumar.
Uma purificação alastra em mim. Uma pureza crescente. Um autêntico processo de revirginização está em marcha.
Mais umas semanas e terei resistências equiparáveis a quando tinha dezoito anos, pele de recém-nascido e cheirarei à menina que trabalha na Parfois. Mais umas temporadas e com as poupanças ficam-me a dever um Ferrari.
Deixei de fumar. Ufa! Vendo bem as coisas até nem foi muito difícil. Há sonhos que demoram uma vida inteira a realizar. Raios, não se tratou de por fim à extinção do lobo ibérico. Proponho-me novos objectivos:
ver os elefantes do Botswana
pernoitar numa vila privativa nas Maldivas
deambular no deserto israelita
Parece que já me estou a ver a comemorar com champanhe e um belo charuto.
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III Deixar de fumar = vegetar
É do conhecimento geral que uma mentira repetida várias vezes, não passando a ser uma verdade é aceite como tal.
Estou há 72 horas sem fumar. Essa é a parte que é verdade. Verdadinha!
A outra, a que não interessa, é que deixei de fumar.
Essa vou repeti-la muitas vezes, porque temendo que não seja verdade, vou aceitá-la como tal.
Convencer-me a deixar de fumar é uma subtileza que se insinua, discreta, como uma colónia atrás da orelha.
É, sem dúvida, mais fácil persuadir um adolescente a apreciar a pintura de Rubens do que a mim a deixar de fumar. Nessas alturas (de tentativas inglórias) repito a mentira e aceito-a como verdade.
Apesar de tudo estou orgulhoso de mim. Das minhas 72 horas. Vivo num ambiente passional do tipo Love Boat. Em regime de auto-deslumbre. Doce como uma torta Dancake.
Considero-me um Zezé camarinha bem-sucedido, passando Nivea Lotion e garantindo Ai lave iu às súbditas porcinas de Sua Majestade [Que saudades que eu tenho do verão!].
Isto num campo, meramente, metafórico, relacionado, em exclusivo, com o meu auto-deslumbre.
Já me sinto a ficar mais saudável. Estou só à espera que pare de chover. A chuva inibe o desportista que há em mim.
Bons ventos vão-me empurrando como uma invencível armada até uma enseada segura, carregando pelo caminho sobre caravelas inseguras. Até parece que oiço (como num pesadelo) os Trovante cantando a Xácara Das Bruxas Dançando:
Ó castelos moiros, armas e tesoiros
Quem vos escondeu
Ó laranjas de oiro que ventos de agoiro
Vos apodreceu
(…)
Caravelas, caravelas
Mortas sob as estrelas
Como candeias sem luz
Os padres da inquisição
Fazendo dos vossos mastros
Os braços da nossa cruz
Caravelas
Entusiasmo-me. Progrido nas horas. 72 e contando. Eu que nunca liguei muito aos Trovante a não ser aquela que toda a gente gosta [Perdidamente] com o poema de Florbela Espanca acicatando não as vitórias (como um autêntico Virgílio) amorosas, mas as desventuras de um marcador afectivo a zeros:
Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Áquem e de Além Dor!
(…)
E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dize-lo cantando a toda a gente!
Estou há 72 horas sem fumar. Já tinha dito, não tinha? Não é muito, mas já conta. O pior no fumar é deixar. E o igualmente mau em fazê-lo é a memória. O cigarro que se fuma a acompanhar o café. A leitura do jornal. Enquanto se espera. Enquanto, enquanto, enquanto…
Optei por deixar de fazer. Simples, não? Libertar-me da submissão ao cigarro e da escravatura da rotina e do hábito.
Sinto-me um vegetal.
Hoje estou naqueles dias em que preciso, urgentemente, de sol e de ser regado.
Apesar de tudo, continuando a ouvir o Luís Represas com os Trovante:
Caravelas, caravelas
Mortas sob as estrelas
Jurando que meia verdade me basta.
72 horas e 30 minutos sem fumar. E contando.
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III Smoke on the Water
Do conhecimento que tenho (felizmente indirecto) o divórcio litigioso é sempre desagradável. Especialmente se parte de uma relação inseparável. Duradoura. Ando a pensar num. Quero acabar com o tabaco. Ando Freddie Mercury em ritmo I want to break free. Quero deixar de fumar, mas a separação tem sido tempestuosa. Litigiosa.
Sem nicotina oscilo, maníaco-depressivamente, entre a Madre Teresa e Howard Stern. Somewhere in between. Na minha cabeça ecoa um Varése em centrifugação. Só por isso, eu e todos os que estão na minha situação deviam ver alguns crimes permitidos.
Deixar de fumar tem-me feito tanto sentido como um “bué” descontextualizado dito para parecer moderno.
Ando perdido na parte do começar. Tem sido um longo começo.
Arranjar razões é o mais fácil. Caço lições num safari organizado por Pedro Rolo Duarte em Fumo (deixar de fumar é lixado) e mais 80 lições que eu vivi, edição Oficina do Livro de 2007. Procuro conselhos e dicas. Alinho em adesivos e pastilhas.
Falta-me a motivação. Sou um Sputnik obsoleto e em queda. A multidão adepta da equipa adversária rejubila e grita “óles!” ante a minha incapacidade em não sair fintado.
Guarda para amanhã o que não acabarás por fazer hoje, bem podia ser o meu lema. O espelho da minha incapacidade. Uma criança pouco tentada pelas guloseimas de prémio.
Não quero gastar dinheiro com tabaco. Sentir-lhe o cheiro (em mim e à minha volta). Não quero sentir-me asfixiado ao subir o último degrau. Eternamente cansado. Nem ouvir «Pai quando é que deixas de fumar?». Acabar com a minha tosse profunda, competindo, cavernosa, com o eco das grutas de Mira de Aire.
Quero assinalar o quadradinho do não fumador. Estar no café sem o cinzeiro à frente. Não entrar num estabelecimento e procurar, como quem está em Wimbledon assistindo atento bola cá bola lá à final, com o público antecipando o Match-point, até encontrar a zona de fumadores. Quero aparecer cedo para a caminhada. Não precisar de um cigarro para o stress, para entreter as mãos, para o tédio, para ajudar a passar o tempo, para acompanhar o café. Quero mudar de hábitos. Um cigarro a menos, uma passada firme. Outro cigarro a menos e o carro a cheirar a alfazema. Outro a menos pelos dedos não amarelecidos. Outro pela ilusão da roupa acabar de vir da loja a cheirar ao perfume da lojista. Tenho maços de anos para compensar. Anseio por verificar que consigo viver com isso. Melhor.
Quero deixar de fumar. É um longo começo e eu, ainda, só dei os primeiros passos.
Quero ser forte. Um Hércules anti-tabágico. Um Popeye determinado de músculos poderosos. Continuam a faltar-me os espinafres adequados.
Sonho com um estádio cantando em uníssono We are the champions, em minha honra, embalados pela minha vitória esforçada.
Todavia, a equipa adversária continua a vencer. Ainda oiço os “olés!”. Continuo a ser implacavelmente fintado. Em constante fora-de-jogo. Another one bites the dust.
Há sempre mais uma desculpa. Para mais eu nem sequer gosto dos Queen (true story). Sou mais Smoke on the water.