Máquina da Preguiça®
O texto é uma máquina preguiçosa [Umberto Eco]
III Russos, só depois do meio-dia
[Notas para um perfil]
Se a literatura for alimento (para a alma?), então eu sou um bom garfo. Nada se aproxima a um magnífico naco de prosa. Uma boa talhada de páginas. Finalizada com um majestoso cubano. Um Guillermo Cabrera Infante, Raúl Rivero ou Reinaldo Arenas.
Mal pressinto o cheiro a refogado letrado e as papilas literárias despertas antecipam, prontamente, um Carré de borrego com molho de frutos vermelhos e creme de alho francês, género Enrique Vila-Matas. Ou uma mousse de Chocolate e gengibre à base de Philip Roth para rematar. Faço, imediatamente, reserva vitalícia.
Evito acidentes culinários. Ou pratos undercooked. Sei que há pessoas que resistem a anos de dieta leve de Margarida Rebelo Pinto. Mas, literariamente tagarelando, aprecio comida condimentada. Nada me satisfaz mais do que uma boa tragédia grega. O que há de melhor do que a morte dos dois filhos de Édipo, Etéocles e Polinices, para despertar sabores? Ainda Creonte não galgou degraus bastantes na subida até ao poder e o meu palato já está em frenesim. Menos que isso, nem se aproxima de uma Salada César.
O meu estômago ressente-se. Claro! A minha saúde anda por um fio. É como degustar uma cabidela às dez da manhã ou uma feijoada e um cozido à portuguesa, bem servido, às onze.
É ouvi-lo a clamar: «socorro, estou a arder!».
Ainda assim, não desdenho. E bom mesmo é um dramalhão, daqueles de fazer inveja a Daniel Oliveira nas entrevistas da SIC, servido numa redacção exemplar. Porque os olhos também merendam.
Literatura russa, obviamente. Ooh La La! Quelle merveille!
E nada de Morangoska deslavada para ficar com um gostinho.
Há quem diga que nas letras, resplendecem os finais de Tchekhov e os de Shakespeare. Nos do inglês, as pessoas acabam mortas. Nos de Tchekhov, deprimidas, amarguradas, mas respirando. Sempre faz menos mal!
Não me lembro da abertura oficial feita por Brejnev. Provavelmente a única coisa que recordo dos XXII Jogos Olímpicos (os de Moscovo) de 1980 é o urso Misha. Nem nunca estive embevecido pelos êxitos da Soyuz. Mas, a partir de certa altura, troquei Enid Blyton por Dostoievski, Tolstoi, Tchekhov.
Foi aí que tudo começou. Comecei a associar "slova" a palavra e "pisat'" a escrever.
Apesar disso, percebo que se evite Gógol, Púchkin, Liérmontov e Turguêniev antes do meio-dia.
São impensáveis de estômago vazio.
Ninguém aguenta niilismo logo pela manhã.
Guerra e Paz, Crime e Castigo ou Anna Karenina em jejum matinal deixam uma sensação incómoda. O mesmo se diga para O Diário de Um Louco de Gógol.
Mas reconheço a minha hesitação, mal começo a ler:
No vasto edifício do Palácio da Justiça, o procurador e os membros do tribunal reuniram-se, durante a suspensão da audiência do processo Melvinsky, no gabinete de Ivan Egorovitch Schebeck;
Esqueço-me, automaticamente, do mal que faz para me concentrar no bem que sabe. Mal a tradução de Adolfo Casais Monteiro de A morte de Ivan Ilitch de Tolstoi começa a fazer efeito, fico deliciado.
A literatura russa tem para mim estatuto de menu completo. E os autores equiparáveis a Gordon Ramsay e Jamie Oliver.
Menos do que isso sabe-me a requentado. Não há estômago que resista. Uma azia desvairada cresce por mim. Perpétua.
Bem, tanta conversa abriu-me o apetite!
O que temos hoje?
Já me cheira a Ziti Al Forno.
Está-me, mesmo, a apetecer um Máximo Gorki.
Estou a ficar com uma fraquezazita.