Máquina da Preguiça®
O texto é uma máquina preguiçosa [Umberto Eco]
III Um dia igual aos outros
Uma mentira repetida mil vezes torna-se uma verdade
Joseph Goebbels
Hoje é dia das mentiras. Não me diga que acreditou que este ano era feriado?!
Diariamente biliões de mentiras são ditas e repetidas. As vítimas são incontáveis: padecentes do conto do vigário, iludidos por projectos seguros, aventureiros de El Dorado, apostadores de chaves infalíveis, apaixonados de amor eterno, indefectíveis da confiança, sonhadores.
Não restam dúvidas de que a mentira se trivializou. Mesmo com perna curta, até ser apanhada, consegue chegar longe e aliciar os incautos.
Neste preciso momento em alguma parte alguém está a dizer uma: juras de amor falsas, promessas que ficarão por cumprir, entregas por fazer, aumentos por atribuir, datas que falharão, acordos que serão violados, objectivos que não vingarão, cavalheiros que se demonstrarão crápulas, virgens que não passarão de rameiras, ouro que se revelará fancaria.
Gente há que se deixa ir na conversa, encolhendo os ombros e estatelando-se na esparrela. Vivendo uma ou numa mentira. Abrindo mão da realidade por troca com a ilusão.
Se o mundo é um palco e representar é fingir a mentira, também, faz parte da representação, acharão alguns.
A mentira mina a confiança. Infiltra-se. Disfarça-se e aproveita-se da credulidade, da confiança, das guardas em baixo, da distração e consegue o que quer.
Mas, a mentira também concede estrelas ao hotel e nota à avaliação. Põe-nos a correr mais rápido e durante mais tempo. Melhora-nos o handicap. Faz-nos ganhar tempo. Avaria-nos a impressora, perde-nos rede, mata-nos familiares e põe-nos onde não estamos. Tira-nos peso, faz- nos mais inteligentes, apresenta- nos como mais novos e é capaz de nos garantir maior importância. Acrescenta-nos cilindrada no carro, arranja-nos namoradas modelo e põe-nos a fazer compras na 5ª Avenida. Aumenta-nos o rendimento, consegue-nos votos, garante-nos habilitações, baixa-nos o défice e faz-nos disparar a produtividade e as exportações.
É por isso que uma boa mentira passa despercebida, soa-nos bem e dá-nos a volta. Não se dá por ela. Assume-se como verdade e tenta fazer as suas vezes.
A mentira é a peta, a meia verdade, o embuste, a burla, o escândalo. Outras vezes, só o dado como já provado. Faz estragos!
Também há as misericordiosas, mas as piores (com melhores resultados) são as que passam despercebidas, as que não se dá por elas.
Em suma, mentir melhora, modifica ou altera as coisas, mas nunca deixa como está ou como devia ser. Tem contornos de uma fuga à verdade. Um menosprezo pela exactidão.
Um mentiroso é um charlatão. Ludibria-nos, manda-nos noutra direcção, conta-nos de outra maneira. Mas, também, pode ser um artista fazendo- nos acreditar no improvável e fazendo-nos sentir melhor.
Deixe que lhe diga que essa côr lhe fica magnificamente. Acredite!
Agora repita comigo: a crise acabou, a crise acabou, a crise acabou, a crise acabou... mil vezes.
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III Um dia a precisar de cem anos
Em relação aos dias, há os que parece que duram uma eternidade, o contrário desses - os que nunca chegam - e os que passam a correr.
A propósito deles há quem acabe a pensar no de ontem e quem se fique pela sua espuma.
Conscientes de que há coisas de que não nos lembramos, outras que nos escapam e outras, ainda, que precisamos que nos lembrem, apesar de escrevemos na agenda, tomarmos nota em sítio visível ou pedirmos que nos avisem, para certos acontecimentos temos dias especiais.
Enfatizam desde os segredos do orgasmo, a vitórias das revoltas sindicais, ideais e efemérides. Acabam celebrados, festejados, a servir de pretexto e deviam ser mais vezes, acabamos por concluir.
Por causa deles temos vontade de aldrabar a periodicidade, de arrancar folhas ao calendário, trocar ciclos solares, mudar as marés e as fases da lua.
São dias que existem pela importância, pelo que representam, pelo que evocam, pelo que permitem, por aquilo a que estão associados. Dedicados a desportistas, artistas, políticos, descobridores, revolucionários, médicos e personalidades em geral. Alguns tornam-se feriados, nomes de praças, de ruas e estátuas.
Hoje é dia da mulher. De todas. Conhecidas, desconhecidas, figuras públicas e anónimas.
Pelas mais variadas razões. Apesar de existirem dias que não deviam precisar de ser dias, hoje é dia da mulher.
Nele se incluem as avós que nos ofereceram lições de vida, mães que nos carregaram, tiraram a febre e mudaram as fraldas, esposas que tiveram os nossos filhos, a parteira que nos ajudou a nascer e a professora que nos ensinou complementos e adjectivações.
Ninguém me tira da ideia que foi um homem com a consciência pesada (representante de todos os outros) a contas com caixotes do lixo por despejar, camas por fazer, pó acumulado e barba por tirar do ralo que propôs o dia da mulher. Sinto-me em dívida. Também eu tenho tapetes por sacudir e roupa e secretária por arrumar. Por mim mulher escrevia-se sempre em maiúsculas. MULHER.
Pela maternidade, sensibilidade, beleza, intuição, força, inteligência a mulher merece pelo menos um ano e não seria exagero dedicar-lhe uma década ou não era despropositado um século inteiro só para si.
Até porque, como é do conhecimento geral, um dia não são dias.
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III O Carnaval é para as mulheres
Uma vez por ano e durante três dias, macho que é macho passa de Alfa a, pelo menos, Beta. E, de preferência, a fêmea Gama. Confuso?
O Carnaval provoca desarranjos graves na testosterona. Desalinhos na sexualidade. Identidade esquizofrénica quanto à varonilidade. Ambivalência. Incontinências de feminilidade. Confunde o X e o Y. É uma espécie de cocktail virulento extraordinário à base de influenza e ébola efeminados. É matéria de exorcismo sexual.
Todos os anos a situação mantém-se. Durante o Carnaval homem que é homem quer fazer passar-se por mulher. Não uma dona de casa extremosa, competente nos refogados e rígida com a educação das crianças e os horários de amamentação, mas uma matrona gostosa, brejeira e oferecida a quem faltam o mínimo de boas maneiras. Com porte de estivador, escondendo debaixo da sensibilidade de entrudo a robustez de metalúrgico.
O folião perde a vocação viril e ganha cintura badalhoca.
A época atrai a mudança como a promessa de cargo durante a campanha eleitoral. É hospitaleira para com quem dá o salto e não entrega cartões-de-visita estereotipados às visitas.
É habitual encontrar um homem cuja transformação apressada faz perceber um paradigma mudado, engordado e degenerando em prima-dona. Pairando num limbo de gravidade zero com a pilosidade enxovalhada, passando de barba de Bin Laden a esfoliações compensatórias. Perde a língua viperina de Howard Stern e de resignado sofredor da síndrome de Tourette, torna-se falinhas mansas reformado do vernáculo.
Arranja-se, pinta-se, aprimora-se. Acrescenta unhas, tira sobrancelha, arrebita pestanas.
Sobem as saias, apimentam-se os ares e decotam-se as blusas. Esganiça-se e tiram-se graves. Perdem-se forças.
Como se foliar fosse mais coisa dela do que dele.
Homem que se mascara ganha cintura fina e meia de descanso. Incha acima do abdominal e abaixo do pescoço. Suspende os acessos de masculinidade. Mostra pele como quem a está a entregar ao sol das Seychelles. Movimenta-se como quem ganhou asas de frango. Oferece-se, sem vergonha, com melhores condições do que as promoções do Pingo Doce. Ganha vocação de freira. Perde o horror ao sangue e às injeções e surge-lhe consistência de enfermeira.
Assim se prova o título que bem poderia ser uma verdade a La Palice. O Carnaval é um shot gigantesco de estrogénio.
No meu caso, não vou em carnavais. Não assisto, abrigado do aguaceiro, ao balanço da baiana. Nem acompanho a batucada. Não gosto de me dar ares. De parecer. Andar em trajes de Ney Matogrosso.
Não faço corte a rei do corso. Não me aperalto. Não envergo uniforme nem visto a camisola. Estalar, rebentar ou enfarinhar para mim não são prioridades.
Não embalo em certezas de "É Carnaval, não há nada a parecer mal!". Não vou em disfarces. E, em relação, a máscaras sou dissidente.
Também não reclamo título de participante no Carnaval mais português ou genuíno. Não tenho pés para samba nem ritmo aproveitável para desfile. Não cedo olho ou acabo mancando para dar em pirata de perna de pau.
Não cedo. Nem que acabe em minoria.
Para alívio, no fim, há uma certeza: enterra-se o bacalhau.
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III Adeus e até para o ano
O ano novo é passagem. Folia, excesso e balanço em partes e prioridades de moeda ao ar, com quem importa por perto. Gozar, fruir...
É ser ambicioso entre tragos de champanhe. Convicto, devido às efervescências borbulhantes, de que nada será como até aí.
Vive-se, momentaneamente, de ilusões, em mesas reservadas, ambiente familiar, entre estranhos, aos encontrões, asfixiando debaixo de confettis, sem dar troco à conjuntura, contestando juros, encargos e indisponível para impostos.
É deixar tudo o que não serviu, ficou aquém, deixou muito a desejar de 2012 em WWW desilusões ponto Com e virar a página ou encetar uma folha em branco.
Sem dúvidas seguir em frente. Como se não houvesse amanhã e ainda agora tivéssemos chegado de ontem.
É utilizar o último dia para aproveitar embalagem e ir por aí: empreendendo, conquistando, fazendo, sem hesitações de que se é capaz de ultrapassar até os imponderáveis.
É não economizar nas resoluções e auto-amnistiar as bancarrotas anteriores.
É passar uma borracha no já feito (mal) e começar a prestar contas pelas promessas de sempre e as recentes. Começar a pôr mãos à obra ao "Para o ano vou...", convencido de que "Este é que é!".
Vencer campeonatos à última da hora. Não entrar em incumprimento à justa. Deixar por orçamentar. Ter ganas de dar a volta ao mundo enquanto houver feriados. Abandonar pessimismos. Filar a ocasião para deixar a Troika a definhar. Jurar que é desta que se vai deixar de fumar, ter atenção ao colestrol, fazer por ficar em forma, não abusar da baba de camelo, poupar, mimar os amigos verdadeiros, ter tempo e dinheiro para.
Sentir passa a passa que alguma coisa está a ficar diferente. Achar badalada a badalada que vai valer a pena. Sem querer saber de ressacas. Aproveitar os últimos instantes do ano moribundo para nos declararmos ou apaixonarmos no primeiro minuto do seguinte.
Pasmar frente ao fogo-de-artifício.
Deixarmo-nos de babelas. E ter a certeza de que a hora é perfeita.
O ano novo é oportunidade. É sempre melhor do que qualquer outro. O momento ideal para achar que estamos no caminho certo e temos a pessoa certa para ir por diante.
Somos grandes e temos costas largas. Sentimos a pele a engrossar. Gigantes com três metros e vinte de ombreira.
Não há impossíveis ou metas inatingíveis.
O ano novo é altura ideal para se fazerem e renovarem votos.
Parece que vai ser duro, mas cá estaremos.
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III It's The End Of The World As We Know It (And I Feel Fine)
21-12-2012
Por displicência levei a sério o fim do mundo. Até madruguei. Por alguma razão especial a espondilose agudiza-se nessas alturas. E achei que teria a ganhar com o avanço matinal. Aproveitar todas as horas, todos os minutos, todos os segundos como se fossem os últimos pareceu-me razoável.
Resolvi, também, fazer um pequeno-almoço reforçado. De estômago vazio, cérebro e optimismo desfalecem. E finalizei com um café duplo. Cafeína e hidratos de carbono davam garantias de serem instrumentos fundamentais para contrariar o fim do mundo.
Salvo melhor opinião, nada como estar bem desperto e de papo apinhado para um fim do mundo que se aproxima.
Sangue-frio, bom ânimo e um nascer do sol igual a sempre permaneceram, no entanto, intactos até final da manhã. O fim do mundo estava, ainda, longe.
Por volta das dez e meia da manhã começara a sentir-me obrigado a fazer uma escolha dos meus livros e discos preferidos caso tivesse que fugir à pressa para algum lado que desse mais garantias de sobrevivência a fins do mundo. Examinei, olhos nos olhos, relatórios de terramotos e tsunamis e conversas TVI 24 entre Judite Sousa e Medina Carreira.
Achei, também, incompreensível não me sentir tentado por uma reconciliação súbita com a transcendência mas, tendo em consideração todo aquele fim do mundo em ciclo roupa delicada, parecia-me despropositado. A única coisa de que precisava de ser salvo era de uma retransmissão de um jogo de futebol onde Jardel defendera a equipa da derrota certa, como São Jorge aniquilara sem misericórdia o dragão.
Calmo e tranquilo, o fim do mundo contrastava com o sanguinário que imaginara. Um autêntico Domingo Vermelho falhara. Continuava ansioso por uma escaramuça planetária género irmãos Gallagher embriagados brigando pelo Beatle preferido, Liam e Noel atirando-se febris às jugulares fraternas em investida fratricida.
Durante a tarde, a situação permaneceu imperturbavelmente idêntica. Nada de diferente sucedera, nem nenhum Hipster radical contribuíra com nada de discrepante. Emails com confissões embaraçosas continuavam por enviar e bilhetes de despedida continuavam por escrever.
São dezanove horas e trinta minutos. Finalmente, não ter açambarcado lacticínios e conservas parece-me ter sido uma óptima opção. As páginas especializadas em cataclismos apocalípticos e fins do mundo anunciados confirmam-se como ridículas.
O mundo está a planetas alinhados aquém do exigível para lhe por fim. Uma oportunidade perdida dirão os sibilinos se nada mudar, entretanto.
Não sei o que vai acontecer a seguir mas, continuo a acreditar que até ao final vai correr tudo bem. Vou até desperdiçar mais quarenta e cinco minutos a ver a segunda parte de uma retransmissão de um jogo de um campeonato com alguns anos. Jardel continua a marcar.
Penso que estamos salvos, naquele ano, apesar de todas as dificuldades, ganhámos o campeonato. Só pode ser um bom presságio.
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III O burro, a vaca e o vilão
Gosto tanto do Natal quanto o próximo. Sou entusiasta das bolas coloridas, das fitas e das lâmpadas em intermitência controlada de semáforo hiperactivo. Preparo-me para ele com pompa e circunstância erguendo, entusiasmado, uma espécie de sambódromo natalício na sala de jantar. Trocando a batucada da Mangueira por um eterno I Wish You a Merry Christmas. A Vista Alegre perdendo preponderância para o pinheiro resinado que serve de esqueleto para as ambições festivas familiares.
Não passo sem o Natal. Pelo menos uma vez por ano. Nem que seja o dos Hospitais ou em regime Jogos sem Fronteiras ou festival da Eurovisão.
De preferência como na canção de Irving Berlin em modelo White Christmas (no original e não numa das versões que, como todas, acha que vai acrescentar alguma coisa, sem nunca o conseguir). De ar adocicado, a saber a rabanadas e sonhos. Clássico. Nada de devaneios pós-modernos trasvestidos de contemporaneidade.
Sonho com Papai Noel anunciando-se triunfal, em vozeira estridente, imunizada pela mebocaína da época. Pronunciando em grito Weissmuler Tarzan das selvas do Pólo Norte:
"Oh!, Oh!, Oh!".
As barbas brancas sobrando dois palmos do ano anterior, longe da adolescência pretérita.
Distribuindo brinquedos ou doces aos bem-comportados do mundo e carvão que ficou do tempo da revolução industrial ao lado obscuro da força, em vésperas nataleiras e em preparos vermelhuscos Coca-Cola/YMCA.
Rodolfo berregando altiva. Sapatinho a jeito e à mercê da generosidade alheia. Enfim...
Estou alerta quanto aos perigos do consumismo próprio da quadra mas, nos últimos anos, tenho contribuído em bife tártaro e Ceviche para a proeminência da barriga de São Nicolau quanto o desejável. E não é por falta de bolota que vão faltar energias à rena Rodolfo de nariz encarnado. Por mim o desempenho de ambos não está comprometido e podem pôr-se à estrada bombando com resistência Duracell da Lapónia, via Vilar Formoso, até minha casa, seguindo por uma autêntica Yellow Brick Road com rasto de azevinho.
Outra tradição, também, importante e onde tenho, igualmente, ricos pergaminhos é a do presépio. Encetado sempre por musgo fresco capturado com auxílio Black & decker GR3420 in loco. Nada de modernices made in Ikea ou de aviário Aki.
Foi por isso, com surpresa, que após ser teologicamente informado das novidades percebi, para meu incómodo, que uma autêntica revolução estava em curso e um casting repentino se avizinhava, fazendo desaparecer actores até agora fundamentais no que ao presépio diz respeito.
Permaneci, durante dias, assoberbado pelo sumiço dado ao pequeno zoo rural do presépio, por Bento XVI. O obreiro convicto da substituição. Revoltado com anacronismos e inconformado com imprecisões históricas e geográficas. Fauna questionada e figurantes, ancestrais devolvidos à devida proveniência. Os exíguos hectares da herdade divina, salpicados a mirra, dos quais faziam parte a pequena quinta biológica sendo ameaçados. Gaspar, Melchior e Baltasar remanescendo no estábulo, salvando o que podiam do costume, comparecendo pelos próprios meios. E eu, achando que são, realmente, misteriosos os caminhos do Senhor.
Admito que a alteração abre espaço, por entre a manjedoura, para mais prendas mas, após grande reflexão, disponível para abdicar do burro, continuo a reivindicar a vaca.
Se não nos virmos, entretanto, Feliz Natal!