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III O Inverno do nosso descontentamento*

Sábado, 19.01.13

A partir de certa altura se ela era interior passou por um raio X especial que a deixou à flor da pele, deixando perceptível as linhas com que a nossa vida se cose e um habitáculo penalizado pelo acumular de geadas e maresias hostis que o fato Giovanni Galli alicia com sucesso comparável ao da participação portuguesa num Festival da Eurovisão.

A idade, claro! Que nos relembra a varicela que nos atacou como uma Blitzkrieg implacável cruxificando-nos sanguinária até à fronteira das axilas, pondo-nos em bicos dos pés para conseguir a salvação. Que nos cobra até pastéis de massa tenra antigos. Que nos atira à cara: "Continuas cá hoje, mas não me esqueci da festa de ontem!".

Por ela passamos a viver paredes meias com o plebeísmo de bactérias e vírus comedores da nossa carne e ânimo.

Ficamos com costas próprias de aleijões e músculos activos em minoria. A nossa sobrevivência miocardicamente ameaçada. A definição dando lugar à deformação. O vigor à dificuldade em atingir com sucesso o terceiro andar sem elevador.

A arrogância do drama do quebradiço das unhas deixa de ser um caso de vida ou morte para a inevitabilidade de um ataque diabético o ser, efectivamente.

De hálito falso exalando eucalipto em pastilhas ambientadoras poderosas.

A pele amarelecendo e ganhando sinais extra como buracos suplementares num green pejado de filoxera. 

Um sistema imunitário em condições não aceites por um frequentador assíduo do eBay.

Os fémures encolhendo e degenerescências várias eclodindo. O queixo em reunificação com o pescoço. O estômago com restos da feijoada de 1985 em vinha de alhos marinando sucos auto-destrutivos, em auto-flagelação gástrica. O colesterol em negociação com as morcelas de arroz ingeridas. Acuidade visual pitosga. Os alvéolos em asfixia continuada devido ao sedentarismo. Bipedismo manco. O cabelo movimentando-se no sentido do centro do crânio, como placas tectónicas arrastando-se angustiadas e as pontas outrora espigadas, desaparecendo pela força erosiva dos anos. 

     Em relação à idade somos uma comadre maldizente, garantindo que se ela não existisse não devia ser inventada.  Com disposição de "Só me saem é duques!". Tentada em trocar a maturidade e a sabedoria por tréguas ao nível dos incómodos da anca. Desfazendo-se dos ruídos orgânicos enigmáticos, salivações estranhas, febres diabólicas. Tomando a dianteira num cortejo de mezinhas para dores e unguentos para mal estares. Afreguesada nas lucubrações e impropérios de quem clama: “Quando chegares à minha idade!”.

Alertas vermelhos e amarelos distribuídos de norte a sul pela cabeça, tronco e membros. Vento forte ao nível pulmonar e  da tensão arterial, aguaceiros prolongados ao nível hepático, humidade ao nível da sinusite...

     Uma coisa é certa, com o passar dos anos os aniversários deixam de ser primaveras para se tornarem o inverno do nosso descontentamento.

 

*A propósito do filme Amour (2012) de Michael Haneke.

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publicado por Carlos M. J. Alves às 12:11

III A idade não conta só para os aniversários

Quinta-feira, 21.06.12

A idade é mimada. Não se deixa contrariar. Nunca conseguimos estar de acordo com ela. Aquém ou além de si. Mas não é um pró-forma. Faz parte do nosso dia-a-dia: «sinto-me bem com a minha idade», «ando farto da minha idade», «não pareces ter a idade que tens», «estás óptima para a tua idade», «isso não tem que ver com a idade», dizemos.

Obriga-nos a esforçarmo-nos por ela. É de difícil convívio. Exige habituação. Resignação. Paciência. Cedência no número de prateleiras e no lado da cama.

   Também não é voluntária. Se fosse por nós, não tinha amigos. Ninguém a queria. Passávamos ao lado. Contornando-a. Pelo menos a maioria. E o remanescente mais por exigências do politicamente correcto.

   Por questões de respeito democrático devia de existir a fila para a meia-idade. Para a adolescência. Infância, etc. Com a derradeira hipótese de cortar a direito.

   A idade é uma gruta de Ali Babá onde se escondem as memórias dos tempos do ié-ié, da queda do muro ou adesão à CEE. Riscar o que não interessa.

Está mesmo ali ao lado. O sítio onde amontoamos o nosso passado e em relação a este, relembrando L.P. Hartley em The Go Beteween: The past is a foreign country: they do things differently there.

O que faz com que a idade também nos dê alegrias, se nos esforçarmos:

M. a aprender a Estrelinha no violino. Todos nós concentrados. Sem nos importarmos. Dedos em procura lenta. Arco passando de mão em mão. C. perguntando entre trejeitos: «Esta cara tem graça?». Rindo. Como nós. E a nossa história de amor. Onde tudo começou. Um Era uma vez pessoal.

Lamechas? Uma pieguice pegada? Provavelmente. Mas só se pede desculpa pelas coisas que lamentamos.

   Na maioria dos dias não se vê bem para que é que precisamos da idade. Não traz vantagens evidentes.

E se traz não compensa as responsabilidades. Só nos faz mais velhos.

A minha não é diferente. Bem podia ser para os outros. Até porque há gente para tudo. Deve haver por aí quem goste dela, mas…

Hoje, no entanto, acabei de nascer. Há serpentinas e balões pelo ar comemorando o meu nascimento antigo. Tchim-tchim. Hoje ela não conta. Nos outros dias a idade é por nossa conta e risco. Anátema habitual. Mas não hoje. Isso não se aplica ao dia em que fazemos anos. Tchim-tchim.

   Alturas houve em que a idade nos faltava. Para assistir à sessão nos cinemas Alfa. Depois acabou a sobrar. De nós. Quando achávamos que já estávamos servidos, ela continuou: até hoje. Dia de aniversário. Num regabofe despropositado. Como uma visita indesejada que impõe a sua presença e que não sabe quando abandonar a festa.

   Nos outros dias tentamos viver com ela. Dizemos vintes, trintas, trintinhas, em vez do que, realmente, é. Mas ela tem coisas de que não lembra a ninguém. É uma chata. Vem connosco à pendura. Ou pior: um passageiro clandestino.

É um tropeço. Inadmissível.

   Às vezes assume-se como inconsciência, peso, desperdício, infantilidade, segredo. Pode ser variadíssimas coisas. Embora tenha aspecto de que só dá prejuízo. Podemos tentar, mas ela não se deixa enganar. Mais valia deixar-nos. Cada um indo à sua vida.

Mas ela não nos larga o pé. Um incómodo. Acarreta mal-estares, irritação, doenças e eczemas. E outras coisas próprias… da idade!

   Por justiça, se pensarmos bem, tem mais a ver com o que se faz com ela. Afinal, a idade também dá muitas alegrias. Sei que já o disse! Mas nunca é demais repeti-lo. Para os néscios. Ou os mal-agradecidos.

   Dito isto vou fazer alguma coisa com ela. Já oiço uns dedos tímidos num violino, hesitando no Lá, a precisar de ajuda. E vejo uma cara engraçada.

   Tchim-tchim. Um brinde à minha idade. Hoje é um bom dia para pensar nela. Não vivemos de costas voltadas eu e ela. Somos bons vizinhos. Tenho muito boas razões para estar satisfeito.

   Parabéns a nós!

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publicado por Carlos M. J. Alves às 11:36





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