Máquina da Preguiça®
O texto é uma máquina preguiçosa [Umberto Eco]
III À mesa-de-cabeceira
Para quem ainda não entrou no universo dos eBook Readers*, gerir a mesa-de-cabeceira pode ser um desafio. Autênticas bibliotecas joaninas, em ambiente de repouso, preparadas para acolher dos beatniks à Geração de 70 e conciliar Antero de Quental, Eça de Queirós, Oliveira Martins,Teófilo Braga, Ramalho Ortigão e a Beat Generation.
Uma mesa-de-cabeceira é uma grande responsabilidade. Não quero nem pensar o que será entrar num quarto em que se abdica de Torga para ter o telefone da rede fixa debaixo do nariz. Diz muito de nós. É diferente ter à distância de um braço John Le Carré ou Raymond Chandler, Goodbye Columbus de Philip Roth ou a trilogia de Stieg Larsson.
Alguém que adormeceu a ler On the Road deixa adivinhar um indivíduo muito diferente do que aquele que optou por José Saramago.
Uma boa mesa-de-cabeceira deve estar preparada para o imponderável, o inusitado, o inexplicável, pelo que se torna importante contar armas. Ver o que se passa intramuros. Não negligenciar nenhum dos seus hemisférios.
Deve o abastecimento ser farto tanto em clássicos de todos os tempos quanto em novidades editoriais. Fazer constar o Cânone Literário do Ocidente (Harold Bloom), com a sua lista de referências intemporais e a estreia. O imortal e o autor com tudo para provar. O nobelizado e a jovem promessa.
Diversidade e inexistência de preconceitos devem fazer parte de um manifesto a seguir escrupulosamente, como se este implicasse a sobrevivência.
Uma mesa-de-cabeceira bem recheada é meio caminho andado para uma noite de sono bem passada. Mal é um pesadelo.
Para além das obras em quantidade e qualidade suficientes, deve possuir uma boa iluminação, óculos à disposição (para quem precisar), respectivo produto de limpeza para as lentes com odor pouco pronunciado e marcadores em número suficiente para evitar o sacrilégio de acabar a dobrar folhas como se, apesar de uma escolha cuidada, tratasse de um vulgar chorrilho light .
Pelo já exposto se percebe que a compra acertada da mesa-de-cabeceira é uma tarefa difícil e que deve ser compreendida como fundamental mesmo que tenha como consequência uma inevitável desproporção de tamanho em relação aos restantes móveis e objectos do quarto, cómodas e tapetes incluídos. Ter espaço suficiente para não ter que acabar de optar entre a presença de certas monografias essenciais e a medicação indispensável é essencial. Isso pode ser tão devastador quanto ter de vencer obstáculos para pôr o recipiente com a dentadura, em vez de volumes extra de Faulkner. Ou comprometer as orações, abdicando do terço familiar por escassez de espaço no sítio onde se encontra a Dulce Maria Cardoso e Céline.
Em relação a mais cuidados, para evitar afrontamentos provocados pelo peso da responsabilidade, desaconselha-se a presença dos Lusíadas, Ulisses e Finnegans Wake por perto do sítio onde se vai pernoitar. Camões e James Joyce podem ser demasiado e desinquietar o sono mais profundo.
Robert Musil poderá, eventualmente, cair mal em horário não diurno pelo que O homem sem qualidades paredes-meias com o travesseiro incitará palpitações incontroláveis.
Na minha experiência depreendo que não está, também, o espírito sempre preparado para o contacto nocturno com o impressionismo, da mesma maneira que o não está para Cem anos de solidão ou Amor em tempos de cólera, pelo que tanto Gabriel Garcia Márquez como Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud e Verlaine exigem moderação.
Para leitores mais preguiçosos, um tomo de crónicas de António Lobo Antunes à cabeceira deve sempre ser considerado, da mesma maneira que os amantes da literatura de viagens não devem hesitar em munir-se de A Arte da Viagem e O Grande Bazar Ferroviário de Paul Theroux, Regresso à Patagónia em dinâmica Theroux versus Chatwin, Na Patagónia de Bruce Chatwin, Viagens de Marco Polo, Caderno Afegão de Alexandra Lucas Coelho da Tinta da China, Cadernos da Viagem à China de Roland Barthes e Últimas notícias do sul de Luis Sepúlveda. Pelo menos.
Alguma poesia para despertar o amante adormecido deverá ter fácil acesso, pelo que o conselho será o de a deixar à esquerda do candeeiro, se ele se encontrar ao centro da mesa-de-cabeceira, deixando a direita vaga, por exemplo, para Kafka ou Edgar Allan Poe para quem gosta desses territórios.
A competir no ombro a ombro pelo espaço ocupado pelo despertador, poderão muito bem estar Gonçalo M. Tavares ou Mário de Carvalho ou para os facilmente seduzidos pela reflexão os filósofos anglo-saxónicos.
Felizmente, a Cerne (passe a publicidade) teve o bom senso de guarnecer a minha mesa-de-cabeceira com gavetas. Na última guardo os boxers. Calvin klein tricolor: branco, preto e cinzento. Porque, no meio disto tudo é sempre útil manter alguma decência.
*Ver Ciberescritas
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III Wallace & Roth
Não quero meter a foice na seara dos Blogtailors, mas fica a informação de que Goodbye, Columbus e cinco contos, o primeiro livro de Philip Roth foi editado em Portugal.
E, já agora, a Quetzal vai publicar a obra do norte-americano David Foster Wallace (que se suicidou em 2008). O primeiro livro a ser editado em português é Infinite Jest ou A Piada infinita, com tradução de Salvato Telles de Menezes e Vasco Telles de Menezes.
Aponta-se para Novembro a chegada às livrarias.
As mais sinceras desculpas pela intromissão.
É bastante provável que se repita.