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III O Senhor do Adeus

Domingo, 24.06.12

Como hoje é Domingo lembrei-me de João Manuel Serra (JMS). É uma razão como outra qualquer. Válida q.b..

Podia ter acabado de ouvir o fado O Homem do Saldanha, interpretado pelo Marco Rodrigues composto em sua honra.

Ou revisto as suas participações especiais no filme de zombies I'll See You In My Dreams ou na série de televisão O Mundo Catita.

Ou a sua aparição na banda desenhada As Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy, de Filipe Melo e Juan Cavia.

Mas foi, mesmo, por hoje ser Domingo que me recordei dele. Como era amante de cinema, todos os domingos assistia a um filme, na companhia de Filipe Melo, músico de jazz, realizador de cinema e argumentista de BD e Tiago Carvalho. Durante cerca de sete anos. Os comentários sobre o que via eram depois transcritos por Filipe Melo para um blogue [as crónicas acabaram no livro O Senhor do Adeus - Tertúlia Semanal de Cinema, da atelier ESCRIT´ORIO editora].

O último foi A Rede Social. De que desconheceu a existência durante muito tempo, mas de que fazia parte para sua admiração e satisfação.

Morreu aos 79 anos. A 11 de Novembro de 2010. Talvez não reconheça o nome. Mas garanto-lhe que nesse dia ficámos todos mais sozinhos.

   Consta que «nunca trabalhou, mas conhece a Europa toda», chegou a comentar-se. Diz-se sempre muita coisa. Um menino rico. Filho de gente abastada. Nunca trabalhou, nem entrou numa cozinha. Assumia.

   O que me lembro, especialmente, dele era que salvava pessoas. Não era médico, não retirava vítimas de prédios em chamas, nem enfrentava batalhas sangrentas para libertar povos oprimidos. Ou outra profissão onde isso aconteça garantidamente. Mas era disso que se ocupava.

Chamavam-lhe o Senhor do Adeus. E salvava gente. Defendia-nos. Com um adeus. Por cada adeus poupava uma vida. Era quanto bastava. Mais o seu coração. E sangue. Um adeus uma vida salva, um adeus uma vida salva…

   JMS passou parte da sua vida a salvar pessoas.

   Desconhecem-se médias e taxa de sucesso. Não há testemunhos. Ou perto disso. E os registos são esconsos e circunstanciais. Mas fazia-o à vista de toda a agente.

   JMS salvava pessoas. De si mesmos. Da indiferença. Isolamento. Dos outros.

No Saldanha, Restelo ou na Rua da Escola Politécnica. Era do conhecimento geral. Se calhar estou a falar para quem também foi salvo por ele. Ou dispõe de informações sobre salvamentos. Cheguei a assistir. E eu próprio fui salvo por si.

Isto porque a solidão para além de torturar mata sem misericórdia. Lentamente.

A solidão só é boa quando parte de nós. Voluntária. Um tempo que é nosso. O silêncio. O pior é a outra. Traiçoeira. Que se instala. Parasita. Tem custos de: «soubesse eu o que sei hoje». Para essa pouco ou nenhum remédio se conhece. E é por isso que quando surge alguém capaz de ajudar a dar cabo dela o seu contributo é fabuloso.

Cada adeus de João Serra servia para a enxotar. Para a mandar para longe. O máximo que conseguisse. Era um «vai à tua vida». Um «deixa-nos em paz».

É por isso que não tenho dúvidas de que quando João Manuel Serra cumprimentava quem passava estava em missão de salvamento. Nem mais, nem menos. Milhares de pessoas foram salvas por JMS. Sempre que passavam por si. Primeiro salvou-se a si. Escapando-lhe. «Essa senhora [a solidão] é uma malvada, que me persegue por entre as paredes vazias de casa. Para lhe escapar, venho para aqui [o Saldanha]», explicava.

Mas depois dedicou a sua vida a salvar os outros. Desconhecidos. A partir da meia-noite. Acenando. Em certo sentido era um herói. Os carros apitando-lhe de volta. Triste quando o movimento acabava.

   JMS salvava-nos de estarmos sozinhos. Que é bom mas aos bocadinhos. Sabe bem mas em doses pequenas. Voltados para nós. Podendo dizer basta. Abrir a porta e chamar: «agora já podem entrar todos». Um claustro com largueza dentro de uma casa recheada de convidados. Um sal que faltando insonsa mas quando largado solto da mão salga em exagero.

   A gente sabe que até consegue sentir-se só rodeados de uma multidão numerosa. Mas, embora nos apeteça dispensá-la [sim, para estarmos sozinhos], gostamos de a ter sempre à mão. Por perto. Ninguém se importa de ser solitário quando tem disponível uma multidão.

   No dia em que JMS desapareceu as vítimas foram incontáveis. E continuam até hoje. Até que apareça alguém que ocupe o seu lugar. O que ainda não sucedeu. Nem se conhece ninguém capaz de o fazer. Talvez JMS fosse insubstituível. Às vezes isso acontece.

As vítimas vão-se sucedendo. 

   Dou-me bem com a solidão. Mas não muito. Temos uma relação de respeito mútuo. Eu sei que às vezes preciso dela e ela compreende que não podemos passar muito tempo juntos. Que quando isso acontece as coisas tendem a azedar.

Talvez por isso, sempre que passo na Praça Duque de Saldanha procuro JMS. Especialmente em dias em que também preciso de ser salvo. Era bom termos alguém pronto a salvar-nos. No sítio habitual. Como quem não vai a lado nenhum. Sempre disponível.

João Manuel Serra já não está lá. Mas há gente que continua a precisar de ser salva.  

Olho sempre várias vezes na esperança de o ver reaparecer.

Mas sei que o pior no adeus é a partida. Um adeus tem fim à vista.

Talvez por isso ele dissesse que era o senhor do olá.

Hoje é domingo e era dia de ele ir ao cinema.

Até sempre!, como ele costumava dizer.

 

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publicado por Carlos M. J. Alves às 14:12





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