Máquina da Preguiça®
O texto é uma máquina preguiçosa [Umberto Eco]
III Ela move-se
Para a M.
Lembro-me que se percebiam [adivinhavam] porções minúsculas de gente. Sombreados nebulosos. Turvos. Começando aos bocadinhos. Largados de nós para si. Uma galáxia tímida organizada em torno de pequenas orbes em gestação, aproximando-se perigosamente da crosta interna da barriga, nadando numa via láctea amniótica de vida: coluna, rins, braços, pernas, etc., etc.
E eu entusiasmado como um Galileu Galilei imprudente, satisfeito com o veredicto que confirmava a minha descoberta: ser pai.
Ansioso. A aprender. Atento.
Animado. Aos pulos.
Conquistado. Domado. Babado antes de tempo.
Esperando-a. De colo pronto. Mais o medo, a inexperiência, as suspeitas, os avisos e os conselhos.
Nome escolhido. Mala feita. Feliz.
Gritando: «Mas ela move-se».
Enquanto ela se agita, boiando em elipses titubeantes, gozando a claustrofobia uterina, em contagem decrescente.
A postos.
Nós disponíveis.
Ela move-se, comprovo com a ajuda do telescópio ecográfico, cego por um mundo criado por mim, gerando-se, evoluindo em eras mensais, gravitando em rotação e translação na parte que desejo ser a melhor em mim e que bate acelerada: o meu coração.
Ela move-se. Como se dissesse olá. Ou, até já! Preparando-nos. Sorrindo-nos de volta?
O telescópio, em observação programada, registando em DVD o que já estava no mais íntimo de nós.
Confirmam-se medidas, distâncias, proporções.
Prova. Contraprova.
Comparação. E demonstração.
Membros?
OK.
Órgãos?
OK.
Desenvolvimento?
OK.
Tamanho?
OK.
Mobilidade?
OK.
É bonita?
Isso pergunta-se?
Faz lembrar mais o pai ou a mãe?
Bem…
E depois nasceu.
Faz hoje sete anos.
E eu continuo a achar que é mais parecida comigo.
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III Isto de ser pai...
Isto de ser pai dava emprego a pelo menos mais três pessoas. Consome tempo e mão-de-obra suficientes. É uma canseira. Acrescenta rugas. Prodigaliza cabelos brancos.
Toda a gente quer ser o melhor. Fazer o máximo. Cortar a meta em primeiro lugar. Mas, temos sempre a sensação de andar com uma volta de atraso em relação ao exigido.
Não há aquecimento prévio. Ou treino. Nenhum sítio para aprender o bê-á-bá.
Dispara-se às cegas. E em todas as direcções.
Lamentamos os nossos erros (diferentes, novos) e os do nosso pai (que jurámos nunca cometer), que nos podia servir de exemplo. Mas, se há ocasião em que a história se repete é na paternidade.
Percebo agora porque os caminhos entre mim e o meu pai tantas vezes se descruzaram. Sem culpas a atribuir. Ele sendo pai e eu comprometido com a minha parte (de filho). Cumprindo-a. Escrupulosamente.
Isto de ser pai facilmente baralha. E dá de novo. Uma vez o processo iniciado, não dá para não ir a jogo. Ninguém perdoa renúncias.
Há tantas opiniões de como sê-lo, quanto o número de pais. Desacordo geral. De quem lamente ao ponto de estar convencido tratar-se de uma overdose sem as partes fixes associadas a uma vida de rock star. A uma experiência mística.
A minha opinião? Algures entre ambas. Às vezes não se sabe. Se dói. Se fique, se vá. Se grite, se chore. Outras, enganamo-nos. Exige procurar conselhos, quando os há. E inventa-se pelo meio.
Em certas ocasiões aprendemos com os erros. Mas, nada é garantido.
Resmungamos.
Duvidamos.
Isto de ser pai tira-nos do sério. Troca-nos as voltas. Desconcerta.
Oprime. Nenhum lugar é seguro. Nada é sagrado. Em constante estado de sítio.
Constrange.
É um abuso. Desarruma-nos a casa e parte-nos a loiça. Toda. Os pratos de estimação são os primeiros.
Baba-nos.
Lixa-nos. Violenta-nos.
Obriga-nos a tudo.
Dá-nos umas merdas de umas noites. Uma porra de umas férias.
Vontades de...
Rebenta-nos com a vida social. Transforma-nos em bichos-do-mato.
Atrapalha-nos a libido. Seres assexuados. Arrependidos do pecado original. Pagando por ele.
Quando pensávamos que já estava...
Fugir nunca é a solução. É pena! Nem isso.
Isto de ser pai é para acabar de vez com o nosso egoísmo. É de darmos a vida.
Se a gente pensasse bem…
Se estivéssemos atentos ao que fizemos ao nosso…
É a paga de sermos filhos. Com juros.
De ter partido a cabeça naquele sítio. Perigoso.
Termos faltado com o prometido.
Escapado ao castigo.
Falhado com o trabalho final.
Atrasados para o compromisso importantíssimo.
Escolhido aquela namorada, com visual trash de Courtney Love. Recebida de dentes cerrados com um: «muito prazer».
Festejado até àquela hora. Sem telefonar.
Ficarmos parvos na adolescência.
Isto de ser pai é estar sempre a aprender. É para toda a vida. E não se muda de campo.
É inexplicável.
Dá-nos a certeza de que tudo vale a pena.
Não tem preço.
É de não haver nada de mais importante.
É coisa para não trocar por nada.
Só passando por isso.
Recomendo.
Isto de ser pai é, afinal, o melhor que nos podia acontecer.