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III No futuro todos seremos bonitos

Segunda-feira, 14.01.13

Para a dona Perpétua que em relação a estética sempre esteve à frente de Kant.

 

 

Em dia de enfartamentos próprios das náuseas, derivadas dos exageros, não há trapo ou elogio que compense os estragos feitos na carcaça. Nesses dias lembro-me, invariavelmente, da dona Perpétua. 

     A ficção é pouco certa no que diz respeito a verdades, mas posso jurar que de tempos em que achava que tivessem sido outras as condições e eu me distinguiria da classe operária ao ponto de ocupar, com destaque, o lugar de McCartney nos Fab Four, das minhas vizinhas - tão certeiras nos vaticínios como na aposta ganha de estender roupa em dias de chuva iminente veio a promessa:

 

"Vai deixar muitas sem ceia!"

 

Para efeitos de exactidão narrativa foi com a mais velha - dona Perpétua - com mais de pitonisa do que as outras e algures entre os treze e os catorze ou pelo menos recém-chegado à adolescência que surgiu a aposta. Suscitada pelo vislumbre do meu corpo franzino, com tufos de pêlo insuficientes na cara para  ter barba cerrada. 

     Dona Perpétua que de proprietária só tinha a largueza pública das ruas era mulher de olhar certeiro e insidioso o que me levou a considerar o que afirmara. Suacelência Miss Moneypenny dona Perpétua, olhando com deferência para os meus contornos, arredondando onde era preciso e concedendo vértice onde ele fazia falta embelezou onde carecia a minha silhueta, em acne perfeito, em ângulo insidioso de estéticas favorecedoras e fez despontar em mim - a seus olhos em reação anafiláctica míope - um semblante de anjo da capela sistina e corpo voluptuoso de Adónis. Uma figura alienígena inexistente e esbelta chegada de fresco da nave mãe.

     No entanto, suacelência Miss Moneypenny dona Perpétua, falhou. Talvez por a beleza poder ser subjectiva, relativa, exótica... O futuro não exigiu convites apressados a artistas solidários com a luta contra a fome no mundo, provocada pela minha beleza estonteante e nenhum Live Aid extra foi organizado por minha causa. As vítimas não se contaram às centenas e a probabilidade de isso acontecer é equivalente à de Courtney Love se tornar uma dona de casa prendada e entusiasta dos lavores. Ninguém ficou sem ceia, por minha causa.

     Obviamente que a explicação para a aposta das minhas vizinhas se encontrava no seu passado áureo (que replicavam em mim) repleto de êxitos ao nível da sua capacidade ímpar para dançar (bailar será o termo mais aproximado) dignos de um Bolshoi e a sua beleza inebriante (desmentida pelas fotografias da época, ainda, em circulação).

     O passado das minhas vizinhas turvado pelo futuro que se lhe seguiu catapultava-as para a fama de belas Helenas (Como habitualmente acontece!), com pretendentes embeiçados em múltiplos portos por si nunca pisados  e rainhas da pista de dança em tabuados de clube recreativo de aldeia, partilhando um único poste de electricidade. Como elas também eu seria belo e dotado para os boleros.

     Parece que ainda a estou a ver dona Perpétua à janela a dizer adeus a quem passa. E eu a olhar para ela com ares de Humphrey Bogart a caminho do nono ano, de respiração presa para enfolar o peito. Uma estampa hollywoodesca nascida e criada lá na rua.

     Claro que acabamos por perceber primeiro que a beleza está nos olhos de quem vê e não em pormenores de simetria, harmonia, luz ou ângulos. Blá, blá, blá... E segundo que, mesmo mergulhado num escafandro mal enjorcado ou com a costura do umbigo proeminente, todos temos uma hora de sorte. Mesmo para aqueles que nunca vivam a Vida Loca ou nunca passem o tempo a comer ostras, acabando afrodisiacamente activados para o que der e vier.

A dona Perpétua sempre teve razão. No futuro, mesmo discordando no que diz respeito a Godard e à quantidade ideal de hidratos de carbono a ingerir, aos olhos de alguém, todos seremos bonitos. Mesmo que ninguém acabe sem ceia. 

     Não tenho dúvidas de que as promessas (mesmo as não concretizadas) do passado dão óptimas ilusões para os dias em que achamos que a idade nos pesa como se andássemos cá desde o primeiro dia em que o homem ganhou polegar oponível. E nos transformámos num ogre com flacidez crescendo até nas pálpebras. Tiram quilos, mudam pneus e desempalidecem consoante as necessidades. Obrigado dona Perpétua.

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publicado por Carlos M. J. Alves às 14:26

III Arrependimentos à parte

Terça-feira, 17.04.12

Digo-vos que assim haverá maior alegria no céu por um pecador que se arrepende, do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento.

Lucas 15:7

 

Está por fazer a estatística global de arrependimentos. O apuramento da média de contrição diária. O total para um adulto saudável, moralmente empenhado e sexualmente activo, de remorsos. Quem nunca se arrependeu que atire a primeira pedra. É um vicío.

   O arrependimento é para quem se preocupa com a absolvição. A sua ou dos outros. Tem target assegurado. É à conta para dar razões. Apresentar justificações. Favorável a quem se escusa. Benéfico para quem evita. Para quem se atrasa. Ou se engana.

É inerente. Natural. Um software visceral com upgrade vitalício, continuamente em funcionamento. Urge o unplug.

  Saibam, porém, que o arrependimento não perdoa. E desculpas aproveita-as quem quiser. A vida tem propriedades de irremediável. Inconformável.

   Para cada arrependimento ou qualquer «estou arrependido» devia existir uma figura que implacavelmente diria «não vou nisso», «faz-te à vida».

   Who cares?

   O arrependimento devia, realmente, matar. Não ficar pela ameaça. Pelo bluff. Há razões mais que bastantes. Se o arrependimento matasse era outra conversa. Não devia ser um “se”, antes uma fatalidade, um “já está”.

Vou mais longe. Digo até mais. Por cada vez que nos arrependêssemos por algo que deixamos por fazer ou de fazer devíamos morrer várias vezes. Não tenho dúvidas. Em catadupa. Devagarinho. Uma por cada hesitação e outra, final, em dose mais dolorosa por termos optado por deixar a meio ou desistir.

Olho por olho, dente por dente. Um lex talionis feroz. Por cada comentário interrompido ou calado pesarosamente, uma língua perdida. Por cada passeata abortada chorada, semanas de entrevamento. Por cada doce extra renegado, cinco quilos suplementares nas ancas.

Por cada embaraçante grama de álcool a mais no organismo tombos vitalícios.

Só assim abriríamos os olhos.

   O arrependimento e o remorso são castigos leves. Quem tem medo? Uma consciência ao fim de algum tempo deixa de estar pesada.

É de baixa manutenção. São trocos. É algo que se sente, não é preciso fazer nada. É para calões.

  Quem se arrepende chora sobre o leite derramado. Um “não tenho paciência” devia ser exemplarmente castigado. Preventivamente. Tal como um “não me apetece”, ou um “não estou para isso”.

Ao primeiro “depois logo faço”, com possibilidade de arrependimento, devia abater-se um raio fulminante sobre o indivíduo.

O arrependimento, tal como as boas intenções só servem para encher infernos. São farinha do mesmo saco.

O arrependimento é uma coisa chata. Em arrependimento não se morre mas vive-se aos bocadinhos.

Deve ser algo a evitar. Ou usado com parcimónia. Só se não houver alternativa.

   Em relação ao arrependimento a minha opção é clara. Não tenho dúvidas quanto à prioridade. Prefiro fazer primeiro e arrepender-me depois. Não deixar por fazer. Esse é o pior dos arrependimentos. Mais vale ir a direito. Antes um impetuoso, trilhando caminhos nunca dantes percorridos, desiludido do que um céptico arrependido.

   O arrependimento é um luto pelo “não feito”. Um requiem pela opção errada.

Tem o seu quê de Madalena. Devia ser contabilizado. Devia retirar créditos. Ser calórico para fazer engordar. Para ser visível.

  O arrependimento agiganta-se a esteroides poderosos de culpa. Banalizou-se. É levado de ânimo leve.

Troco um 10 de Junho e três dias de Carnaval por um dia inteiro sem arrependimentos. Devia haver o dia livre de arrependimentos. Desimpedido. De circulação espontânea. Descuidado. Sem consequências.

   Admiro alguém que diz: «Não me arrependo de nada». Mesmo que esteja a mentir. Respeito mais, facilmente, um mentiroso do que um arrependido.

   No entanto, tenho de admitir que, se o arrependimento matasse, hoje já tinha morrido, pelo menos, três vezes.

Quem me dera estar a mentir.

 

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publicado por Carlos M. J. Alves às 16:09

III Sem comentários

Terça-feira, 27.03.12

[Manual de sobrevivência para comentadores banais]

 

 

Existem de todos os tipos e origens. Habilitados, desabilitados. Experientes. À experiência.

Com prosápia gourmet, qualidade Beluga. Em aparato popularucho francesinha.

Rápido e desenvolto ou mancando na observação final.

Adivinhou quem disse comentador e, também, aceitamos quem falou em crítico.

É uma espécie de queixinhas. O preferido da professora. Um bufo.

Um Rottweiller assanhado. Esfaimado. Sem as vacinas em dia. Fazedor de vítimas.

Achtung! Uma distração e induz em erro. Achtung! Uma hesitação e convence. Achtung!

    Cada português tem per capita omnipresente no seu quotidiano media, pelo menos, um Marcelo Rebelo de Sousa, um António Vitorino e um Miguel Sousa Tavares em regime on demand basta mudar de canal.

All the opinion makers where do they all come from?, poderiam questionar os Beatles.

Mudar de vida pode ser uma possibilidade. O "ex" é um caldeirão borbulhante de poção mágica de onde brotam Obelixes para o último reduto luso da resistência analítica.

O ex-desportista. O ex-árbitro. O ex-político. A ex-vedeta.

Em Portugal a inactividade leva inevitavelmente à facilidade no rescaldo. À filigrana interpretativa. O Mr. Magoo da arbitragem transforma-se num Pierre Luigi Colina da exegese dos lances da jornada. O ministro demissionário um D. Quixote dizimador de moinhos da política opressiva. O compositor inexistente em avaliador de obra alheia. O caga-tacos faz-se tomba gigantes.

O Reboot profissional põe a zeros as fragilidades. Emancipa potencialidades. Um batptismo retemperador nas águas do rio Jordão do painel televisivo inocenta vícios e desperta qualidades inexistentes.

    Na maioria dos casos, em relação aos comentários/críticas A.K.A bitaite ou chorrilho a melhor posição a adoptar seria, por parte dos dissiminadores:

    a) retenção na fonte;

    b) mocinha recatada e prendada resguardada dos olhares alheios.

I wish. Comentadores não os leva o vento. O comentador (a soldo ou sem facturação) é um cidadão viajado com passaporte pronto e em ordem, com visto assegurado para circular, low cost, livremente pelo espaço sideral da galáxia opinativa. 

Como se trata de um território habitado por monstros ferozes (os outros críticos) e perigos imensos (as donzelas enxovalhadas) todas as cautelas são poucas. A beira do precipício algures entre a preferência e a inimizade de estimação em que se encontra a análise leva o comentador a ter que se precaver.

Ficam alguns conselhos.

A apetência do comentador em mergulhar em auto-deslumbre narcisicamente nas águas atraído pelo(a) seu/sua reflexo(ão) é arriscada. Em caso de queda às águas como fazer uma boia? Caro comentador, dispa as calças, dê um nó em cada uma das pernas. Atire-as ao ar de forma a enchê-las. Amarre o cinto no cós das calças. Voilá!

Outra situação. Em caso de partilha de espaço com um crocodilo o comentador deve correr aos ziguezagues. Pressionar o pescoço do animal e tapar-lhe os olhos caso cheguem a vias de facto.

Etc, etc.

    Moral da história: devido aos comentadores há uma situação em que aprecio (e prefiro) verdadeiramente os políticos. Quando dizem: NÃO COMENTO.      

Achtung Baby.

 

 

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publicado por Carlos M. J. Alves às 19:07

III O lado errado da folha

Sábado, 17.03.12

Um Amigo (dos grandes) viu travado um projecto porque o rubricou no canto superior direito e não no canto superior esquerdo. Ou vice-versa. Tenho dificuldade em memorizar o ridículo. Recusado. Prateleira. Ele sabia? Não. Devia saber? Não. Apercebeu-se da troca? Não. Poderia ter sabido sem ser previamente instruído? Também não. O que importava? O sítio? Não (ou não deveria). O que era necessário? A rúbrica. Mas… O que contou foi a regra. Violada. Mesmo que só existisse ali. Que só valesse para aquele caso. Por um dia. Descartável. Regra é regra! Mesmo que exija abrir um novo mar. Outro. Não morto. O meu amigo devia ter intuído. Adivinhado. Percebido. Ter um olfacto extra-sensorial que lhe permitisse saber que algo cheirava a esturro, mal tivesse colocado no lado errado da folha o primeiro C.

A (i)moralidade da história? O projecto arrastou-se durante meses. Prepotência!

        O prepotente impede. Esconde. Tiraniza. Põe para o fim. Troca o lado da folha, sem aviso. Ou arranja um especial. O sítio da cruzinha. Vive para a cruzinha. Não admite trocar a esquerda pela direita. Só há uma hipótese, aquela: a única. A de sempre. A incontestável. A obscura. Sofre de uma miopia extrema, advogando-se vistas largas. Nem olha para o lado.

        O prepotente é um falso visionário de vias únicas. Um profeta dos aflitos. Um fundamentalista da não opção. Está na repartição. Na secretaria. A despachar, a receber, a analisar, a rever. O seu processo, o seu impresso, a sua declaração, a sua candidatura, a inspecionar o seu carro. Verifica a sua e a minha pontualidade. Confirma a nossa assiduidade. Avalia-o. Escrutina-o.

Não tem capa, nem fato flamejante, mas outorga-se propriedades sobrenaturais de omnipresença e omnipotência.

Não é burro, mas parece. Não simpatiza com a inteligência. Tem autocontrole. Não desarma. É determinado. Não transige. Não vê necessidade. Não percebe. Não vê. Não admite. Lambe botas. E cús. É uma máquina. Programada: «a senhora não vê que sempre foi assim», «o senhor não percebe que há a regra», «a menina não compreende que foi o que me mandaram».

Tem má vontade. Não admite o (seu) erro. Evita a confrontação. Escamoteia responsabilidades. É óptimo a abandonar barcos. Só tem uma resposta. Não pensou na alternativa. Não concebe a opção. Não há branco se só se precisar de preto. Preto se tudo se resolver (pior) com branco. O 1 passa bem sem o 0.

        O prepotente acha-se importante. Dá-se ares de «eu é que sou o presidente da junta». Incha. Pavoneia-se. Bamboleia-se. Exige um papel. Dois, três… Não compensa a presença. É rígido. Com flexibilidade mumificada.

        Em suma, o prepotente, burocratiza. Acrescenta à regra. Complica (o já difícil). Acrescenta. Ostraciza. Concebe o inadmissível e admite o inconcebível. Justifica o impossível e impossibilita o justificável. Parece outra coisa. Gingão. Vira casacas. Apontando à mouche: ocupa-se do desnecessário. Zás!

Tem uma coisa a seu favor: cada um é para o que nasce.

 

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publicado por Carlos M. J. Alves às 16:27





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